CAPÍTULO 15 e 16

ESCRITA E CRIADA POR: João Paulo Ritter

CLASSIFICAÇÃO:

15

Continuava o sopro brando e sussurrante da brisa do mar.
Rosalina tinha a cabeça pendente para a terra e os seus cabelos, indiferentes, brincavam ao soprar travesso da brisa com as pedrinhas soltas na ladeira.
O silêncio principiava a coalhar.
A cinco passos de distância, de pé, com uma lanterna furta-luz na mão esquerda, e com a direita sustentando uma machadinha de abordagem, estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a boca cerrada a salivar bile.
Luzia-lhe o olhar com a mesma vermelhidão da lanterna; os cabelos empastados de suor, caíam-lhe úmidos pela testa. Estava medonho.
Era um quadro sombrio e lúgubre.
A figura austera do velho, mergulhada na penumbra, contrastava com o grupo iluminado do primeiro plano. A atmosfera começava de se fazer carregada e pouco e pouco escondera a lua.
O foco da lanterna aumentava a densidade das sombras, onde os olhos de Maffei brilhavam como os de um gato bravo. Esse olhar tinha as fosforescências da pupila do tigre.

O desgraçado Miguel sentia mais que nunca a influência magnética daqueles olhos que o fitavam da escuridão; afiguravam-se-lhe a própria sombra a espiá-lo.
Nessa ocasião a lanterna tinha um quê de humana e atrevida: parecia uma cara risonha e irônica a contrair-se no vidro sujo de pó e a deitar para fora a língua comprida e ensangüentada, língua de luz, cuja claridade doía como um insulto.
Quando essa claridade caiu em cheio no rosto de Miguel produziu- lhe o efeito de uma bofetada. Estremeceu e corou de vergonha.
Felizmente voltara-lhe o sangue-frio.
O velho, com um gesto imperioso e grosseiro, ordenou-lhe que o acompanhasse; Miguel maquinalmente abaixou a cabeça, enquanto Maffei, sempre calmo, deu-lhe indiferente as costas e pôs-se a subir a ladeira.
Rosalina permanecia sem sentidos nos braços do amante, que, com tranqüila delicadeza, segurou-a pelos joelhos com a mão direita e com a esquerda amparou-lhe a cabeça lânguida, e, como uma mãe faria ao pequenino, deitou-a carinhosamente no colo: depois, segurando-lhe as costas com o braço, fê-la descansar com cuidado a cabeça em um dos seus ombros, e começou a seguir silenciosa e vagarosamente o velho.
A luz da lanterna ia gradualmente amortecendo, à proporção que no céu o negrume se desenvolvia.
No meio do silêncio, destacavam-se os passos cadenciados do velho e o ranger de galhos e folhas secas, que o outono arrojara ao chão.
Um ou outro passarinho, enganado pela claridade da lanterna ao passar Maffei, piava do seu esconderijo, cumprimentando o dia artificial.
Quando a gente sobe uma ladeira, qualquer peso estafa logo e parece avultar extraordinariamente.
Depois de cinqüenta passos Miguel sentiu-se exausto. À proporção que ia subindo, mais íngreme, mais pedregosa e mais difícil era a ladeira; firmava o pé, e a pedra em que o firmava desprendia-se a rolar ruidosamente até a praia; então o equilíbrio e a agilidade substituíam as forças, que aliás lhe minguavam.
Para animar-se apertava de vez em quando o corpo de Rosalina, ao que a desfalecida respondia com um suspiro tranqüilo e duvidoso, como o ressonar de uma criança adormecida.
Porém pouco e pouco foram desaparecendo os últimos recursos e reproduzindo-se as dificuldades: o suor jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a língua seca; o coração doído; a cabeça perdida; a respiração cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o cansaço fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias.

E nessa vertigem acompanhava ele com a vista esgazeada a luz vermelha da lanterna, que gradualmente ia-se afastando, diminuindo sempre.
Sem saber por quê, ligava certa correspondência entre as próprias forças e o bruxulear trêmulo da flama; parecia-lhe que, extinta aquela luz, faltar-lhe-ia o ânimo para o resto do caminho; pedia mentalmente a Deus a vida para ela, com o mesmo fervoroso interesse como a pediria para si.
Contudo, a lanterna estava já nos seus últimos arrancos.
O velho tinha com vantagens de forças aumentado o espaço entre si e Miguel; mais dez passos, oito! Cinco passos! Dois… e chegou!
A lanterna escondeu-se, a luz desapareceu para Miguel. O rapaz vacilou, ia cair! Equilibrou-se!…
Um vozear confuso e penetrante parecia-lhe dizer aos ouvidos – ânimo!
Um esforço mais! Um último arranco!
O moço reuniu os destroços de suas forças; beijou com os lábios cobertos de suor o rosto gelado de Rosalina. e cortou de carreira os últimos trinta passos que lhe faltavam.
A lanterna crepitara o seu último clarão, podemos dizer, o seu último suspiro, brilhou mais forte e morreu!…
Nisto, Miguel acabava de atravessar a porta do fundo da casinha branca e caía desamparadamente no chão, com Rosalina a seu lado.
Desabou, quase morto.
O suor corria-lhe de todo o corpo: a caixa dos pulmões erguia-se e abaixava-se com a sofreguidão de um fole enorme fazendo grande rumor a respiração ao sair; a voz desaparecera; as pálpebras fecharam-se; o suor convertera-se em umidade pegajosa e doentia. como a última transpiração de um tísico.
Sentia vertigens e vontade de vomitar. Era um incômodo comparável ao enjôo do mar.

16

O pescador foi ao interior da casa e pouco depois voltou. Com a presença do velho, Miguel ergueu-se de um pulo – era outra vez um homem.
Num dos ângulos sombrios de um quarto, Ângela, ao clarão minguado da luz do azeite, orava à Madona; a claridade mortiça do nicho escorria até à varanda e batia em cheio na palidez nublada do rosto de Rosalina. Estava sinistramente encantadora.
Maffei aproximou-se dela, arrastou-a até o leito e voltou.
Um gemido da desfalecida atraiu para aí no mesmo instante Ângela; para os corações extremosos, um gemido é sempre um apelo urgentíssimo.

Voltava o velho com as mãos vazias e o olhar tranqüilamente feroz; Miguel não era covarde, esperou-o sereno, de braços cruzados.
– Precisamos nos entender, disse Maffei com aspereza. Venha! E tomou o lado dos abrolhos, à esquerda da casa.
Miguel seguiu-o silenciosamente. Entranharam-se na picada e desapareceram.
O caminho não era freqüentado, como que se tornava mais difícil e em parte quase intransitável.
Miguel apenas o conhecia; o velho, porém, apesar dos obstáculos e do negrume da noite, que se tomara sombria, caminhava desembaraçadamente e até com pressa; o outro seguia-o, perdendo-o às vezes de vista, cortando com dificuldade a vegetação enfezada, que lhe obstava a passagem; os galhos chicoteavam-lhe as pernas e o rosto; diversas partes do corpo sangravam com os espinhos, duas gotas de sangue, que lhe corriam pela face, lembravam duas lágrimas vermelhas.
Depois de vencerem duzentos dificultosos passos, deram subitamente com a rocha; achavam-se defronte do mar.
As lufadas fortes do vento anunciavam próxima tempestade. O tempo parecia colérico e os dois homens calmos e sombrios.
O velho assentou-se tranqüilamente na única pedra solta que havia e com um gesto convidou o companheiro a fazer o mesmo.
Miguel aceitou o convite e ficaram juntos.
A pedra era pequena, o que os obrigava a ficarem encostados, unidos, sós, como dois bons amigos de infância.
Depois de algum silêncio, Maffei abriu a falar, porém era como se o fizesse por mera formalidade; falava como se estivesse lendo, era como se proferisse as frases convencionais de um juramento perante um tribunal. Aquelas palavras metódicas e sem expressão verdadeira lembravam a missa. O velho falava como um padre.
– Teodoro Rizio – principiou ele – viveu para vergonha sua e da família. Era devasso e encontrado constantemente bêbedo pelos alpendres; foi acusado de assassino e morreu preso numa prisão de Leorne. Sua desgraçada mulher não o sobreviveu por muito tempo, morrendo pouco depois, de tísica, dizem uns, de miséria, dizem outros; de vergonha, digo eu.
– De desgosto… – emendou Miguel, deveras chocado com as
palavras grosseiras do pescador, que lhe caíam na cabeça, pesadas e inteiriças, como paralelepípedos de pedra.
– Não é isso verdade?… – perguntou Maffei.
– É – fez secamente o moço.
O velho continuou sacudindo os ombros, cada vez mais automaticamente.
– Ficou desses desgraçados um filho; não sei se herdou do pai todos os vícios, porém é certo ter herdado toda a miséria, que o fez peregrinar pelas ruas de Roma, sem pão, sem lar, sem família. É isto ou não verdade?

– Meu pai – disse humildemente o filho de Teodoro – não me deixou miserável, deu-me uma rabeca e ensinou-me a tirar dela o pão para a boca.
– Mas foste um vagabundo!
– Fui.
– Bem – continuou o velho. – Eu também fui pobre, eu também te- nho família, no entanto nunca fui desgraçado!
– Porque foi sempre feliz – disse indiferente o moço.
– Mas sou muito ambicioso! Muito! Entendes?! – disse o velho arregalando os olhos e batendo convulsivamente na perna de Miguel.
– Já o sabia – respondeu este com calma. O velho continuou como se falasse para si:
– Fui pobre, é verdade, mas trabalhei e trabalhei muito e por muito tempo, para ajuntar alguma coisa; poupei, especulei e consegui entesourar ainda mais! Hoje sou rico! Bastante rico! Entendes! Porém, mais do que nunca ambicioso. Preciso de minha filha para subir, talvez venha a ser nobre, e não para dar-ta a ti ou a outro qualquer boêmio.
O moço resmungou alguns sons ininteligíveis.
– Bem sei – prosseguiu mais brando o velho – de tudo quanto se tem passado; Rosalina sofrerá, por isso que te ama, mas espero que em breve esteja tudo acabado. Tu ficas aqui e nós partimos. Por ora aceita isto para te arranjares.
E assim dizendo procurou meter na mão de Miguel uma bolsa com dinheiro, que tirara da algibeira.
– Guarde-o! – disse este com altivez. – Não preciso de esmolas!
– Não queres então aceitar? – insistiu Maffei.
– Não! – disse resolutamente Miguel, levantando-se.
– Contudo creio que não nos aparecerás em Nápoles…
– É impossível…
– Impossível?!… – perguntou Maffei, cuja cólera principiava a transpirar. E que vais lá fazer? Sim! que vais buscar?!…
– Ver Rosalina… disse naturalmente Miguel; procurá-la, dizer-lhe que a amo e amarei sempre!
– É essa a tua resolução?
– Até a morte.
A resoluta calma do artista incendiou o ânimo do velho, e, transformando-o rápido como um raio, assistiu-lhe sangrenta a raiva por todos os poros, como se dentro lhe rebentasse um aneurisma de cólera.
Rangiam-lhe os queixais, roncava-lhe a respiração, partiam-lhe chispas diabólicas dos olhos; as unhas, de tão cerradas, sangravam-lhe as palmas. E medonho e insolentemente nervoso, levantou-se cambaleando.
Cravou por algum tempo no moço o olhar esfogueado e com uma voz, que seria a do tigre se o tigre falasse, bradou:
– Preferes antes morrer! Desgraçado! A deixar de vê-la? Não é isso?
Fala!
O velho roncava estas palavras na posição da fera que arma o pulo.
Firmado nas plantas, com as mãos abertas como duas garras, encarava feroz Miguel, como suspenso à espera da resposta suprema.
O amante de Rosalina depois de breve perturbação meneou a cabeça afirmativamente.
Este gesto foi o grito de guerra!
Um bramido selvagem ecoou nas cavernas do peito do velho! E a pantera arremeteu-se contra a vítima!
Abalroaram-se!

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