CAPÍTULOS 01 e 02

ROMANCE DE: Aluísio Azevedo

1880

CLASSIFICAÇÃO:

01

Na célebre Rua de Toledo, em Nápoles, porventura mais bela hoje do que no ano de 1843, época em que sucederam os fatos que vamos narrando, figurava uma casa cinzenta com cimalhas de mármore cor-de-rosa.
O edifício tinha trinta metros de altura sobre sessenta de comprimento, e, a julgar da colocação e feitio de portas e janelas, e atentando para as folhas de acanto que ornavam o ábaco das colunas de dez diâmetros de altura e pertencentes sem dúvida à rica e variada ordem coríntia, era talhado pela escola antiga.
A face dianteira, posto que um tanto chata, era bem arquitetada, podendo ser dividida em três partes distintas. – A central, com cinco janelas de honra e três portas de entrada geral, sendo a do centro mais larga e mais guarnecida – e as duas partes laterais, inteiramente iguais entre si, com três janelas cada uma e fechando em graciosa curva as extremidades do frontispício.
Destas extremidades partiam duas alas de colunas, que, sustentando um esférico avarandado de balaústres do mesmo mármore das cimalhas, ladeavam elegante e circularmente o edifício.
O portão central com pilares de mármore também cor-de-rosa, abria para um átrio, espécie de corredor quadrado, cujas paredes betumadas com terra cozida, apresentavam em alto-relevo, assuntos mitológicos, notando- se alguma monotonia na disposição simétrica das figuras meio humanas e meio irracionais, sendo na maior parte fabulosas.
O chão desse corredor, ladrilhado de pedra de diversas cores, terminava por uma ampla escadaria de pedra calcária, dividida em dois lances, que se encontravam na extremidade superior. Aí uma varanda gradeada com vista para o corredor dava passagem para o interior da casa por uma larga e bonita porta, que comunicava imediatamente com a sala de espera, na qual uma infinidade de estatuetas, vasos de pórfiro e outros muitos variadíssimos objetos de arte distraíam a atenção de quem lá se achasse.

Seguia-se a sala de visitas, preparada e guarnecida com gosto e rigor, sobressaindo do roxo-escuro das paredes a brancura opaca dos bustos e estatuetas de jaspe, colocadas de espaço a espaço sobre trabalhadas peanhas de basalto; magníficas mesas de sicômoro, caprichosamente talhadas, refletiam-se, pejadas de delicadas tetéias, nos espelhos oitavados com moldura de metal dourado embutido no ébano; o chão, de madeira brunida, luzia como uma lâmina de aço polido, refletindo o fundo artisticamente talhado das cadeiras e das mesas.
Atravessavam-se ainda algumas casas, destinadas a salões de baile, alcovas particulares e câmaras de recreio, tais como biblioteca, sala de fumar, quarto de armas etc.. etc.. até chegar a uma enorme varanda que costeava em semicírculo de um lado a outro toda a casa.
Efetivamente, dessa varanda gozava-se de uma vista esplêndida e variadíssima; das janelas da frente devassava-se a Chiaja, Vila Realle e lados de Capo di monte; quem aí estivesse veria o formigar constante e geral da população e sentiria o confuso motim dos cafés, restaurantes, ourivesarias e casas de modas, de que já então abundava a Rua de Toledo; daí envolveria agradavelmente com a vista o soberbo Palácio Real com o seu jardim à beira do golfo, e os seus grupos de bronze no começo do jardim.
Do fundo davam as vistas sobre uma magnífica chácara, pertencente à casa, bem plantada e guarnecida, tendo no centro um belo chafariz de mármore rajado. Galgavam depois os olhos os grupos amontoados de casas e quintais, e alcançavam finalmente os pitorescos arrabaldes, anunciados pela copa de árvores seculares.

02

Nada há tão desastrado e perigoso como mudar repentinamente de posição.
Modificam-se os caracteres mais firmes e delicados e confrangem-se as crenças mais arraigadas; é um desmoronar doloroso, é um desesperar de náufrago: ilusões desfeitas, convicções profanadas, afetos destruídos, tranqüilidade nula, amor proscrito – tais são os efeitos da luta desigual dos hábitos de toda a vida com o capricho vaidoso de um dia; tais são os restos que, após a tormenta, sobrenadam à flor do oceano revolto da alma, como restos de um coração que naufragou.
Grosseira e estúpida ambição é a que leva o homem a trocar a paz segura do lar pela suposta fortuna.
Foi isso que sucedeu à família do pescador – enriqueceram.
Para alguns enriquecer é naufragar, não em alto-mar, porém em alta sociedade.

O vício é a fome desse naufrágio.
Maffei enfronhara-se na opulência como numa casaca alheia: sentia- se mal; incomodavam-lhe as mangas compridas demais, porém a tudo fechava os olhos, contanto que desses sacrifícios resultassem para ele dignidades e considerações.
Era o seu sonho dourado.
E com essas honras e com esses supostos títulos acharia ele a felicidade?
Não, decerto, porque a verdadeira felicidade é incompatível com o ruído e com o fulgor. Não, porque ela é tranqüila, singela, econômica e alheia a tudo que é brilhante e espetaculoso.
A felicidade, como o mais neste mundo, é relativa, e só pode subsistir dentro de seus competentes limites.
Maffei, cego pela ambição, buscava uma felicidade alheia. Desgraçado!… Fatalmente seria vitima da sua cegueira, tanto quanto uma ave que tentasse mergulhar ou um peixe que quisesse voar.
A casa cinzenta da Rua de Toledo era propriedade do antigo pescador.
Com algum jeito, conseguiu introduzir nela o jogo elegante; receber todos os sábados e gastar todos os dias.
O ouro é para o parasita o que o ímã é para o ferro: em pouco tempo encheram-se os salões de Maffei. E no meio daquela gente que o adulava, o rico burguês sentia-se grande, invejado e respeitável.
Entretanto, aquela roda se desenvolvia e multiplicava com a prodigiosa fecundidade da larva.
Mas donde lhe vinha essa gente?
Não sei!… A podridão que responda donde lhe vêm os vermes.
Tudo neste mundo tem a sua conseqüência, o seu séquito próprio de misérias, o seu acompanhamento natural e espontâneo – a glória tem a vaidade; o amor o egoísmo; a podridão o verme. É a lei fatal dos contrastes e dos extremos tocados: não há sentimento que não tenha uma extremidade na terra e outra no céu, um pé no berço e outro no túmulo, um olho na luz o outro na treva.
Foi por isso que, ao cabo de três anos, Maffei tinha com heróicos esforços, cevado, relacionado e habituado aos costumes de sua casa uma roda de homens elegantes, que fumavam, bebiam e jogavam à custa dele.
Houve quem lhe proporcionasse ocasião de especular com os seus bens: triplicou-os.
Já era poderoso e ridículo, antipático e adulado; é justo que viesse a ser rico e desgraçado.
E, com efeito, passava os dias entregue sempre a esse cogitar aborrecido, que produz a preocupação doentia dos homens excessivamente ambiciosos; nada desfrutava, nada o distraía, nada vencia arrancá-lo das profundezas das suas preocupações; vivia a mergulhar no fundo dessa cisma constante e estéril, que faz de um homem um bicho insuportável.
Maffei seria insuportável, se não fosse rico.
Mesmo durante o sono, o pobre-diabo não vivia menos apoquentado; nessa segunda existência aturava coisas horríveis! Às vezes, numa especulação, perdia todos os bens e via-se a esmolar inteiramente pobre com a filha; outra vezes, dava para roubar e era preso como ladrão, condenado às galés e coberto de grilhões e pancadas; noutras ocasiões era Miguel que lhe aparecia formidável, saindo do mar, cheio de sangue, de limo e de cólera, a exprobrá-lo das suas torpezas, a cuspir-lhe na cara e a espancá-lo, como se espancasse um cão: e, coisa mais singular, Maffei, que acordado só se lembrava de Miguel com indiferença e desprezo, durante o sonho temia-o covardemente, e deixava-se bater por ele, trêmulo e suplicante a seus pés, confessando as próprias culpas e reconhecendo a razão da parte do adversário. Um dia, Rosalina afigurou-se-lhe descomposta e sem pudor a injuriá-lo; outra vez, foi enforcado e seu carrasco era Cristo, que do alto do cadafalso, poético, louro, cheio de bondade, sorria-se piedosamente para ele; cometia às vezes sacrilégios e então acordava em gritos e prantos; enfim, Maffei durante o sono sofria horrivelmente dominado e combatido por um inimigo tremendo e mau, que o fustigava e repelia apesar de sair dele próprio.
Queremo-nos referir a esse – eu, que durante o sono sai de nós e à
parte constitui livremente a sua individualidade, pensando, praticando e resolvendo a seu bel-prazer, sem nos ouvir, sem nos consultar.
Vezes há que, durante o sonho, a despeito da nossa honra, roubamos, a despeito da nossa coragem, choramos aos pés de um inimigo, e a despeito do nosso amor, matamos o próprio pai ou irmão. E o – eu – independente e arbitrário dos sonhos faz-nos caprichosamente assassinos, ladrões e covardes, sem por isso ter nenhuma responsabilidade ou castigo.
Por outro lado Rosalina transformava-se de dia para dia. Já não dava a mais pálida idéia da antiga camponesa, formosa e louçã, cheia de singela ternura, amante e amada, mulher na idade, criança na inocência. Além da beleza nada mais restava desse encantador, mais divino que humano, mais anjo que mulher, desse ente que outrora com a sua garganta e o seu coração incensava de poesia e cantos matutinos a casinha branca.
Fizera-se elegante e não sem trabalho.
Teve de vencer certos obstáculos renitentes como a linguagem, a princípio, depois os movimentos, a voz, o olhar, o sorriso, tudo, toda essa beleza fora necessário desmoronar, e com que dificuldade! para sobre as ruínas dela construir-se outra beleza mais falsa, mais cara e menos rara – a elegância. A elegância começa sempre onde a natureza acaba, é uma viciosa continuação pelo homem.

As regras do canto, os passos da dança, a música, os preceitos de civilidade, a distinção afetada, a gramática, são coisinhas fáceis de aprender na meninice, porém obstáculos assustadores na idade em que já se não tem respeito aos mestres.
Todavia, Rosalina venceu todas as dificuldades.
Agora não a incomodavam mais os vestidos justos, decotados e de enorme cauda, afizera-se aos sapatinhos à moda francesa, e o triunfo seria completo se, de vez em quando, sob os invólucros de seda e de rendas bordadas, não quisessem as desenvoltas carnes da outrora camponesa, proclamar a sua independência, violando colchetes e estalando alguns pontos mais delicados do vestido.
Quanto não custou habituar aquelas belas mãos tão morenas e tão gordinhas às luvas apertadas!
Os dedos repeliam os anéis, o pescoço o colar, os braços a pulseira!
Como não suspiravam os delgados pés pelos sapatos frouxos com que dantes corriam?
E os cabelos? Os belos cabelos pretos de Rosalina, que dantes tão vaidosamente se ostentavam ao sol com seus reflexos de azul-ferrete? Coitados! Choravam agora escondidos e presos nos caprichosos penteados cheios de flores artificiais e pedrarias, mas na sua raiva tinham razão os cabelos, que tão bonitos como aqueles, compravam-se falsos penteados, porém tão belos cabelos como dantes mostrara Rosalina, só os pudera ostentar quem os possuísse naturais.
Em suma, Rosalina já não era uma rapariga, era uma senhora.
Conhecia todos os segredinhos das salas, já sabia sustentar com um sorriso fingido as visitas de cerimônia, aturava maçadas sociais com aparente alegria, ajeitara a fisionomia a sorrir e ficar triste, segundo a ocasião, como impõe a sábia delicadeza, tinha amizades convencionais, ares de proteção e tinha também sempre engatilhado nos lábios um formidável – Oh! – para todas as pessoas que lhe mereciam respeito e acatamento.
Estava completa a obra.
O ouro derretera-se, dele levantaram-se as duas espirais de fumo – Civilização e Hipocrisia. Estas duas forças combinadas produzem um fluido capaz de transformar um anjo em mulher e uma mulher em demônio. Rosalina respirou esse fluido e aprendeu a grande ciência da vida –
sabia esquecer, sabia odiar e sabia mentir.
Quando a gente chega a conhecer tanta coisa, não pode mais, nem precisa aprender o que é – ser boa e honesta. Maffei cada vez estava pior.
A despeito da sua tão próspera fortuna, entristecia progressivamente como um velho urso de feira; vivia cada vez mais concentrado e sombrio, procurando o isolamento e a solidão.
Afetava uns instantes de prazer quando se metia na roda dos amigos; chegava mesmo, com força de vontade, a arranjar uma espécie de sorriso artificial, com que os obsequiava; consistia essa espécie de sorriso em dilatar os lábios, avincar as peles franzidas do rosto, que lhe sustentavam as mandíbulas, e por entre os dentes soprar uns sons bestiais, que se podiam classificar entre uma nota desafinada de clarinete e o ronco gutural de um porco.
Estava, no entanto, civilizado – tinha cabeleireiro próprio, vestia-se com distinção, bebia licores que estragam o estômago e o cérebro, e jogava tão bem como qualquer fidalgo de alta linhagem.
Que lhe faltava, pois?
Simplesmente duas coisas – esperar mais algum tempo e casar a filha com algum titular de pura nobreza e reumatismo gotoso. Bela expectativa!
Da família, foi Ângela quem menos se modificou. Cada vez mais devota, encerrava-se no quarto, indignada contra tudo e contra todos.
– Que não a procurassem! Não se queria comunicar com pessoa alguma. O que, digamos de passagem, sobremaneira satisfazia o ex- pescador, que pensava consigo: – Ora, que diabo vai fazer nas salas esta velha ridícula e burguesa, senão me incomodar a mim e divertir os mais? Antes trate ela de liquidar esse restinho de vida, que para pouco ou nada lhe poderá servir.
Contudo, ia a boa mãe Ângela bocejando as suas intermináveis orações e transformando insensivelmente a religiosidade em mania. Mais dois passos e despenhava com certeza aquela carga de ossos no idiotismo.
A religião, como tudo que se propõe um fim legítimo e necessário, ao mesmo tempo que é manancial de inúmeras virtudes e felicidade comum, é a fonte sombria de moléstias espirituais e desregramentos da razão.
As grandes causas só produzem efeitos ótimos e péssimos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima