A Intrusa

ESCRITO POR: Júlia Lopes de Almeida

ANO: 1908

CLASSIFICAÇÃO:


CAPÍTULO XVIII

A pouco e pouco, autorizada pela ausência do genro, a baronesa tomara posse da casa.
O marido intervinha às vezes, aconselhando que deixasse à outra todas as determinações, ao que ela respondia – se valera a pena ter saído da chácara para se pôr à tutela da inimiga!
– Não, meu velho, tem paciência, eu estou de sentinela à última vontade de minha filha. Ele jurou: terá de cumprir o juramento. Esta mulher é mais perigosa do que eu pensei, porque é também hipócrita e sabe conquistar pelo jeito toda a gente. Menos a mim! Glória pertence-lhe. Já me tem feito chorar, a filha da minha filha, por quem tanto me desvelei sempre! Até parece que já lhe vou perdendo o amor… Não percebes o cálculo?
– Não percebo nada. A rapariga trata como pode de ganhar a sua vida. O que tu fazes, filha, não é digno de ti. Inventaste uma paixão, onde talvez não exista nem simpatia, e vives a debater-te diante de fantasmas. A moça é fina; não é do estofo comum das governantas, isso é certo… Mas sabes lá, tu que tens vivido sem necessidades, a que sacrifícios obriga a pobreza?
– Não faltam ofícios!
– Mas sobejam concorrentes… Eu sei o que vai por aí! Olha: vou apontar-te um exemplo: o dr.
Teobaldo Ribas. Lembras-te? Um engenheiro distinto! Está com um emprego secundário numa companhia de empreitadas; a família habita numa casinhola de porta e janela na Cidade Nova e pode-se adivinhar o que se passa lá dentro, entre oito crianças fracas e o casal sem recursos… Eu, francamente, não sei mesmo como esta pobre moça ainda te atura. Pelas desfeitas que lhe tens feito, se fosse outra…
– Ter-se-ia ido embora. É o que eu digo. Não tem brio. Mas o meu partido está tomado; custe o que custar e seja como for hei de pô-la fora daqui.
– Não faças isso!
– Ora essa! Por que não?

– Não estás em tua casa!
– Estou na casa de minha filha.
– Para o que te deu! Tua filha só existe na tua imaginação. Capacita-te disso, pelo amor de Deus! É um caso de obstinação incompreensível, em ti, que foste sempre tão criteriosa. Acalma-te… e voltemos para a nossa chácara. Eu estou farto de cidade até aqui! – e apontava para a calva.
– Voltaremos… deixa estar… eu também já não posso mais… A minha vida é um inferno… Todos esquecem, todos gozam, só eu vivo acorrentada ao passado, e revendo a todos os instantes a cena horrível da morte de Maria! Está aqui tudo, tudo, estampado em meus olhos, enterrado no meu peito. A minha vida parou naquela hora! Não vejo, não ouço, não sei de mais nada. Os anos e os meses têm corrido para mim ignorados. A minha existência é a existência da minha filha. O coração dela ficou dentro do meu. É o que eu sinto! Hei de defendê-lo até o último extremo! Às vezes, também eu acredito na loucura… Ao princípio, enquanto Glória era só minha, sentia até certa suavidade em conviver assim com a minha morta… Nota que já não digo: a nossa! Mas agora, agora que a inimiga, a intrusa, me rouba também o amor da minha neta, sinto dentro de mim um clamor de choro que não posso sufocar, por mais que me esforce! Sou uma abandonada.
– Glória adora-te como sempre…
– Foge-me… esquiva-se… acha a minha companhia monótona… A outra conta-lhe histórias, mostra-lhe gravuras, saracoteia-se com ela pelas ruas, até já a surpreendi pulando na corda com a menina, como se fossem duas colegas da mesma idade! As crianças gostam de alegria. É natural que a minha Glória a prefira a mim! Tenho ciúmes dela, sim, tenho muitos ciúmes… E ainda queres que a poupe e que me deixe roubar sem um protesto. Nunca!
– Consulta um médico… a tua excitação é doentia…
– Já me tardava! Um médico, e água de flor de laranjeira! A outra também te conquistou a ti. Se te mandar dançar sobre a sepultura de Maria… tu dançarás?
– Talvez!
– Ainda o confessas!
– Mas, filha, que queres que eu faça?! Tenho pena de ti, mas não te posso dar razão. Quiseste vir, vim. Consome-me o sacrifício. Faze o que entenderes, contanto que voltemos depressa para a chácara. Consente, porém, que eu lamente a outra, como tu lhe chamas, e que a ache digna de maiores considerações. Agora deixa-me prevenir-te de que o Argemiro se cansou do desterro e volta amanhã.
– Escreveu-te?
– Telegrafou a d. Alice, pedindo-lhe que mandasse o Feliciano esperá-lo à Central.
– Ora vê tu! Telegrafou à outra, em vez de o fazer a ti, como era natural. Queres mais claro?!
– Eu sou hóspede. É ela quem põe e dispõe aqui.
– É a dona da casa!
– Tal qual.
– E achas isso tolerável?
– Perfeitamente. É paga para isso.
– Ele deve chegar?…
– Amanhã, às oito da manhã!…
– São?…
– Três horas da tarde.
– Tão pouco tempo!
– Achas pouco?! Repara que há um mês e dois dias que ele partiu; e para quem conhece os hábitos do Argemiro, faz espantar tamanha demora…
– Fugiu de nós…

– Já pensei nisso…
– E eu que o amava como filho!
– E ainda lhe queres muito bem.
– Não…
– Lembras-te de ser sogra, quando já não o és…
– Sou.
– Em vida de Maria o teu genro era para ti um deus!
– Porque fazia a sua felicidade. Mas agora traiu-a… Vamos lá para baixo. Onde estará Glória metida? Amanhã… ele volta amanhã… e eu tenho sido tão cobarde… não sei o que me dá, quando vejo aquela mulher! Delambida. E embaixo daquela pele macia ela tem uma alma de ferro. É dura.
– O Argemiro não há de gostar quando souber que nunca a admitimos à nossa mesa…
– Ela ia à dele porventura?
– É diferente.
– Ora…
– Também não lhe agradará a confiança exagerada que dás ao Feliciano…
– É cria de casa…
– É um velhaco.
– Também te desagrada?
– Completamente.
– Pobre rapaz… Prouvera a Deus que a outra fosse tão sincera… O barão limitou-se a sorrir, com escárnio e tristeza.
Desceram.
A baronesa gritou:
– Feliciano! Onde está minha neta?
– No quarto de d. Alice…
– Vá chamá-la.
E depois, como para si: “A casa não é tão pequenina assim; o diabinho da menina mete-se naquele quarto maldito… para quê?!”
O barão desceu ao jardim, calado, sem disfarçar o seu aborrecimento e um certo pavor.
Começava a cena…
Feliciano batia com os nós dos dedos na porta da governanta.
– D. Glória?
– Que é? – respondeu ela de dentro.
– Sua avó está chamando a senhora…
– Diga a vovó que já vou. Estou desenhando!
A baronesa exasperava-se, passeando na sala de jantar. E como a menina não aparecesse logo, ela gritou:
– Feliciano!
– Senhora?…
– Então?
O negro sorriu malevolamente:
– Estão conversando…
– Bata outra vez! Diga que venha já! Desaforo! Feliciano voltou a bater, maciamente, sem impaciência.
– D. Glória?
– Já vou! Diga a vovó que espere só um bocadinho…
Era demais! Aquilo precisava ter um fim. Até a neta lhe desobedecia! Sim, senhores! A obra da outra estava completa! A não ser o negro, todos conspiravam contra ela. Até o marido… até a filha da sua filha!

Pela porta aberta da saleta ela via na parede fronteira o retrato da filha, muito desbotado, esvaindo-se, cercado por uma moldura de ébano.
“Enquanto eu viver, meu amor, será lembrada a tua última vontade… não me esqueci; eu vivo só para a tua memória!…” – pensou ela. E depois, por entre dentes:
– Parece que ela está fazendo de propósito… mas comigo não se brinca!
Feliciano rondava a cena, disfarçadamente, polindo com um trapo de camurça os trastes já polidos. Fora por manha que entreabrira a porta da sala, quase sempre fechada, bem em frente ao retrato da morta e, sem parecer olhar, ele vigiava todos os movimentos da baronesa. Ela tremia de raiva por não ver chegar a menina.
– Ora já se viu uma coisa assim! Querem maior provocação! – e, apontando para o relógio: – Há mais de cinco minutos! Isto não pode continuar… Está bonito!
E imperativamente, furiosamente:
– Feliciano?!
– Senhora?
Apesar da sua máscara de seriedade, percebia-se que o negro estava por dentro contentíssimo.
– Diga a d. Glória, uma vez por todas, que venha já ou que eu vou buscá-la pelas orelhas!
Feliciano quis prolongar aquele desespero e arrastou os movimentos, calculando o tempo para maior acumulação de ódio; mas a baronesa, impaciente, passou-lhe a dianteira e caminhou pelo corredor para o quarto da governanta.
“É agora!” – pensou o negro, encostando-se a um umbral, para ver.
Glória, já de pé, punha em ordem a sua pasta de desenhos, e Alice cosia perto da janela, quando a baronesa, empurrando com força a porta do quarto, apenas encostada, entrou, lívida de raiva, no aposento.
– Vovó!
Alice levantou-se, perplexa.
– Já, lá para dentro! não ouviu? Há que tempos a mandei chamar e a senhora é assim que obedece às minhas ordens?! Quem manda aqui? Sou eu, ou é aquela mulher? Diga!
– Vovó… eu…
– Nem uma desculpa! Não quero ouvir mais nada! Tudo é mentira! Já; lá para dentro! E não me torne a pôr os pés neste quarto.
– Vovó…
– Cale a boca! ande!… ande!
E, pela primeira vez em sua vida, a baronesa empurrou com as mãos fechadas, brutalmente, o corpo da neta.
– Saia daqui! já disse! Rode depressa, antes que eu perca a cabeça! Fuja! que está-me ficando perdida pelas más companhias!
E, sem interromper o tom de fúria, com os olhos vermelhos, a papada trêmula, voltou-se para Alice:
– Quanto à senhora, não é precisa para nada aqui. Se fosse outra teria compreendido que já é demais. Eu sou suficiente para tomar conta da casa da minha filha. Veja quanto se lhe deve e retire-se hoje mesmo.
Alice, com os olhos engrandecidos pelo espanto e pela lividez nervosa das faces, respondeu, forçando a calma:
– Não conheço a senhora sua filha.
– É demais!

– Considero a casa como do seu genro e só ele poderá dispensar os meus serviços.
– Isso é um atrevimento!
– É uma resposta.
– Bem me diziam que a senhora não era apenas uma criada, mas também a amante de Argemiro!
– Enganaram-na. Nem uma, nem outra coisa.
– Se fosse outra, eu não precisaria dizer tanto, para que já estivesse lá fora! Capacito-me de que realmente a sua companhia é prejudicial à minha neta e não hesito em pô-la na rua. Saia!
Alice não respondeu, fixando os olhos no rosto transtornado da baronesa. E depois, com raiva subjugada:
– E se eu não quiser?…
– Sairá à força. De mais a mais, é cínica!
– Sou honesta. Estou de guarda a um lugar que me confiaram e que defenderei até a morte. Seu genro chega amanhã. Partirei depois dele ter entrado nesta casa. Antes, não! não, não e não!
– Ah, a amaldiçoada! Imagina talvez que Argemiro a prefira a mim! – exclamou a baronesa com uma gargalhada insultuosa.
Alice mordeu os beiços para não responder: todo o corpo lhe tremia, como num acesso de febre.
Glória correra para o quintal. E era como se a casa se desmoronasse sobre a sua cabeça. Que razão teria a avó para querer tanto mal à d. Alice? Que iria suceder?! A quem gritar por socorro?
A voz da baronesa perseguia-a. Sentia nos ombros o peso das suas mãos irritadas. Quem lhe diria… A loucura?! Seria a loucura?! Deveria chorar pela avó, pela sua razão perdida, ou salvar a moça, que ficara sozinha em sua frente? Mas salvar como, se ela tinha medo? Glória atirou-se chorando para o jardim, na ânsia da liberdade e do silêncio. O avô, ao vê-la, compreendeu tudo e correu a ampará-la.
– Que tens, meu amor?!
Animada pela presença do velho, a menina agarrou-o com força.
– Venha, vovô… corra… vovó é injusta… é má… está dizendo coisas terríveis à d. Alice… não sei o que é… Vovó me bateu! pelo amor de Deus… ande depressa!
O avô resistia; mas, ao ouvir-lhe as palavras – “vovó me bateu” – endireitou-se num espanto e olhou de perto para os olhos da neta.
Não! ela não mentia. Os alegres olhos da sua Maria da Glória estavam cheios de lágrimas, em que boiavam uma grande decepção e uma terrível dor.
– Ah, se papai estivesse aqui!
O barão apressou-se, agarrado à neta; mas ao aproximar-se do quarto estacou. Não devia entrar.
Em vão a neta o impelia, suplicando-lhe que interviesse.
Ele sabia. A mulher não cederia por nada desta vida. O mal estava feito; para que recomeçá-lo?
Não conseguindo abalar o avô, Glória avançava sozinha para o quarto, afrontando tudo, quando a baronesa saiu, hirta, com os lábios afinados e pálidos, os olhos circulados de roxo. A menina recuou espantada. Nunca a avó lhe parecera tão alta.
– Que estás fazendo aqui? Eu não te disse que não tornasses a pôr os pés neste quarto?! – rugiu ela ao topar com a menina.
– Vovó…
Mas a avó não quis ouvi-la, e agarrando-a por um braço foi-a levando, numa fúria.
O marido, metido num vão de janela, não a interrompeu, temendo exacerbá-la com as suas ponderações. Passado o ofego do desabafo, ela se explicaria.
Apiedava-se de um rumorzinho de choro que lhe parecia perceber agora no quarto de d. Alice. “As mulheres são terríveis,” – pensava ele – “devoram-se umas às outras, como animais de espécie diferente… Até a minha, que foi sempre incapaz de torcer o pescoço a uma galinha, dá-se agora, depois de velha, ao prazer de torturar uma criatura sua semelhante… E, afinal, coitada, quem sofre mais é ela… que não encontra remédio para a sua doença… E ora aqui chegamos ao desfecho que ela tanto ambicionava e eu tanto temia… E agora? Que se teria dito?…”
E nunca a sua chácara cheirosa, os verdes campos macios, cortados de mangueiras e águas remansosas, lhe fizera tão fundas saudades. As suas flores do horto, preparadas para a destilaria, estariam morrendo nos pés e o seu catálogo interrompido, amarelecendo no fundo inerte de uma gaveta. Olhando para as flores do genro, ele via as outras, as suas: o absinto, as marcelas medicinais, o sabugueiro vaporoso, as malvas benfazejas, o limonete perfumado e mil outras, confundindo-se nos tons azulados ou verdes das suas ramagens bem alimentadas.
Olhava para as rosas pensando nas papoilas, quando o Feliciano lhe disse atrás das costas, com uma vozinha ciciada:
– Sá baronesa tá chamando o senhor…
O barão não quis olhar para o negro e subiu para o quarto, abafando um suspiro. Que mais?

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