CAPÍTULO 01 até 03
Aluísio Azevedo
1880
CLASSIFICAÇÃO:
01
Nas terras pequenas, onde as ambições e o egoísmo são relativos ao tamanho do lugar, são entretanto os corações extraordinariamente maiores que nas grandes capitais.
Parece que essa víscera diminui na razão inversa do engrandecimento de uma cidade; quanto maior for a terra, mais ridículo e corruto é o coração de seus filhos. Ele é como o barômetro da civilização, que o sufoca e amesquinha.
Cada vez acreditamos mais que a inocência anda de par com a ignorância, como a lealdade e a franqueza com a inexperiência, como o progresso com a desconfiança, como a glória com o egoísmo, como a ambição com a desvergonha e finalmente como a riqueza com a miséria.
Os milhões e as misérias degradantes são o patrimônio das cortes, como a mediocridade de haveres e a ausência de absoluta miséria são o das pequenas cidades – acumulam-se de um lado os bens para faltar do outro – acumulam-se mais, mais ainda, exageradamente mais, e mina pelo outro lado a miséria degradante, inconcebível, sem nome.
Esse desequilíbrio da fortuna produz o equilíbrio da balança social, o equilíbrio das classes. Do contraste das circunstâncias nasce a indústria e o comércio; estes são o progresso e a civilização.
E o que fazem o progresso e a civilização ao contemplar a paz dos campos, a felicidade serena do lar, a fortuna dos obscuros e ignorados filhos da província?
Riem-se grosseira e estupidamente.
A ingênua hospitalidade da província, a espontaneidade no obsequiar, a facilidade de amar, o desinteresse no servir, o desejo de agradar, o compadecer dos infelizes, o consolar os desesperados, a obrigação de proteger os fracos, o interesse pelo semelhante, e mil outras virtudes dos pequenos lugares, passam ridiculizadas senão desconhecidas nas grandes capitais, onde o dinheiro forma um centro de gravidade, em torno do qual, como formidável mundo planetário, gravitam, sujeitos e dominados pela força centrípeta, a moda, a aristocracia, a elegância, a vaidade, o orgulho, o egoísmo, a ambição, o desamor, a indiferença, a baixeza, o roubo, a mentira, a torpeza, a desonra e mil outros vícios brilhantes, cujas centelhas são todas as vergonhas, todas as misérias, todas as corrupções sociais!
A hipocrisia é moeda corrente nos grandes meios e há como um comércio de ódios surdos entre os correligionários mais íntimos e comunicados desse círculo, dourado na superfície e podre no fundo.
Tudo ofusca! Tudo luz! Porém nada conforta porque nada tem valor sincero e real.
Na província os sentimentos são mais nus e verdadeiros e as almas mais humanas e firmes. Aqui o coração é coração, o bom é bom e o mau é mau; aqui as mães são verdadeiramente mães, ali muito raras das vezes o são; aqui a mulher quer ser mãe para ser feliz, ali não quer ser mãe para não afear; aqui o amor e o casamento são coisas puras, fáceis e naturais, ali são jogos de especulação e de interesse individual. Nas terras pequenas o casamento é, em geral, uma conseqüência do amor; nas grandes, quando ele no casamento exista, o que rarissimamente sucede, é uma conseqüência do casamento, isto é, da convivência e do hábito.
Daí os imensos crimes e as torpezas mesquinhas; daí os filhos raquíticos e desestimados, as mães doentias, céticas, aborrecidas e sem amor.
Na província, enfim, cada um tem o seu coração, por ele vive e
pratica, por ele ama e só ele delibera; na capital há somente um coração para todos, podemos dizer um coração oficial, uma víscera da nação, um aparelho mecânico e econômico – tem a mesma pulsação e o mesmo calor para todos; é quase que um coração artificial; é mais um objeto de luxo, que um órgão necessário; é uma tetéia dourada, é um boneco de papelão, é um trapo, é lama!
Pode haver um bom povo numa grande capital, convimos, mas urge compreender que um bom povo não diz o mesmo que uma boa gente. Assim como uma atmosfera, aliás boa e salubre, se compõe de moléculas boas e más, cuja combinação produz magníficos resultados; assim também o povo de uma grande capital, como o de Paris, por exemplo, ou de Madri, pode ser bom no todo e ruim em partes.
Junto, unido, fundido em massa, ligado compactamente pelo entusiasmo, pelos brios políticos será bom, porque é brilhante e é grandioso, porém como as montanhas, só produz efeito visto de longe, donde com um olhar se abranja o todo e não as partes. Será belo, através dos prismas encantados da história e dos séculos, será. transparente e azul, depois de uma refração, como nos aparece o éter através da luz do sol e dos gases atmosféricos, porém de perto é grosseiro e informe como a montanha, pedras bruscas e ruins, vegetações enfezadas, barrancos perigosos, onde se escondem répteis malvados e traiçoeiros.
Assim é o povo de uma capital civilizada, pode ser bom no conjunto, mas em geral os homens que o formam são entre si maus e viciosos.
02
Fria e fisiologicamente esmerilhando a verdadeira causa, não é espantar, como parece à primeira vista, que a estranha família de Lípari se houvesse tão boa, tão patriarcalmente virtuosa, tão desafetadamente ingênua, tão infantilmente generosa e protetora, para com um pobre moço que se apresentava como mestre, sem proteção, sem dinheiro, sem atestados de colégio, sem outros dotes, que o recomendassem além dos morais e intelectuais.
É que nos lugares pequenos abrem-se os corações antes de se abrirem os olhos; preferem o bom caráter e os bons costumes à grande sabedoria e à brilhante nomeada. Ninguém se diz – mostra-se; ninguém pergunta – vê.
E se procurássemos bem a causa de tudo isto, haveríamos de descobrir que, em vez do ar polvilhado das ruas estreitas das cortes, dos acepipes caprichosos dos hotéis, dos vestidos apertadíssimos de baile, das encanecedoras vigílias, das festas, do abuso dos perfumes, do uso dos licores excitantes, dos sentimentos contrariados, das dores disfarçadas pelo riso e das lágrimas fingidas; em vez de tudo isso respiram os da burguesa província o ar livre dos campos, comem os frugais legumes de suas hortas, vestem-se à larga, dormem cedo, encantam-se com os perfumes das flores e delas tiram as mulheres os seus omatos, e mostram no olhar e no sorrir as dores ou alegrias que lhe vão por dentro.
Não é de pasmar tal contraste entre os civilizados filhos das grandes capitais e os singelos habitantes dos lugares pequenos, porque os estômagos de uns são diametralmente opostos aos estômagos dos outros, e o homem é bom ou mau, conforme o estado mau ou bom de seu estômago.
Os perfumes e o álcool estragam o cérebro e desbotam a memória; as anquinhas confrangem a respiração; o pó arruína os pulmões; os hotéis encarregam-se de aguar o sangue; enfim todos estes cúmplices da morte, que constituem o deleite e o encanto das grandes capitais, principiando por estragar o estômago dos cidadãos classificados, acabam por dar batalha à alma, que se enerva, se gasta, se corrompe e apodrece.
Agora voltemos de novo a medalha. Os outros! Como são felizes! Como são sadios! Como do que vivem todo o elemento fortifica e avigora. Como são bons e alegres, que pois têm bom o estômago e puro o sangue!
O bom estômago é a base de toda e qualquer felicidade possível. Sem estar em perfeito estado o estômago, não pode haver alegria sem alegria não há saúde e, sem esta, que seria a virtude? A virtude é uma conseqüência da saúde e da alegria; a tristeza depõe contra a virgindade e contra o amor. E finalmente que são a virtude, a saúde e a alegria, senão a mais completa felicidade humana – a família?
De mais – a beleza! Não será ela o conjunto dessas três qualidades reunidas? Não será a beleza a continuação da saúde, da alegria e da virtude?
– Certamente que sim, como certamente é esta a única possível e verdadeira fortuna.
Logo, os filhos das grandes capitais são geralmente maus e duplamente desgraçados, que além da desgraça de o ser, têm ainda a, porventura maior, de conhecer que o são.
E todavia continuam a ir se torcendo dentro das suas jaulas de ouropel, a entulharem, com os esqueletos vivos – os hospitais, e com os mortos – os cemitérios.
Deixemo-los viver ou morrer.
03
Para onde e para que se dispunha Miguel com tanto afã? Ë o que vamos ver e o que necessariamente ficou concertado desde aquela singular entrevista na choupana de Sombra da Noite.
Prepararam-se como para uma pesca no alto-mar; Miguel abriu francamente a bolsa a Sombra da Noite, e este soube servir-se dela com inteligência e economia; fretara um barco grande de pescar, comprara provisões, salgara bastante peixe, empacotara lenha, bolacha e frutas secas, enchera duas talhas de água fresca, munira-se de bom vinho e aguardente, arranjara duas macas, alcatroara os competentes archotes de feno e com tal zelo e atividade se houve em tudo, que à meia-noite todo o necessário estava pronto.
O vento era favorável e já o barco se sacudia impaciente na praia. Entre esta e o barco, grosso archote, coberto de resina, espalhava um clarão avermelhado e fumífero, parecia, refletindo na umidade da areia, uma brasa cuidadosamente colocada sobre uma lâmina de vidro.
De vez em quando interrompia a luz do archote o vulto negro de Sombra da Noite, carregado de mantimentos, que ia deixar a bordo; logo voltava com água pela cintura, subia de novo a ladeira e tornava a descê-la vergado com a carga. Seis ou sete carretos e dera por feito o carregamento. Então armou a tolda no tombadilho, empurrou com cuidado as talhas para um lado, calçou-as e depôs, ao alcance da mão, a borracha de aguardente; abriu em seguida a escotilha, arrumou nela os fardos de víveres e subiu novamente à coberta; aí fez lume para disfarçar a umidade, estendeu um bom encerado, armou duas macas, e, tomando fôlego, que tudo isto o fizera cansar, disse em voz alta:
– Pronto, com os diabos!
Depois, por sua conta e de sua idéia, assestou à proa quatro anzóis e duas redes de pescar. Feito isto, tirou vagarosamente tabaco de uma bolsa de couro, encheu bem o cachimbo, olhou em torno, procurando descobrir o que faltava e disse satisfeito:
– Bom!
Acendeu o cachimbo, voltou à praia e subiu para casa, cantarolando muito tranqüilamente e muito contente de sua vida.
Já lá estavam à espera Miguel e o cão.
O artista desprezara as roupas graves do professor e revestira a sua antiga e singela blusa de artista ambulante: tinha na mão o estojo da sua querida rabeca, uma faca de bainha na cintura, na algibeira todo o dinheiro que possuía e no coração toda a esperança que lhe restava, na cabeça… Ah! nessa, além das harmoniosas concepções, que um amor malfadado lhe inspirara outrora, apodrecia de há muito uma idéia sinistra e repugnante, dependurada da imaginação, como o cadáver contraído de um enforcado.
E, seguido dessa idéia, negra, como a sombra informe da sua própria desgraça, sentia alvejar, nas margens opostas do mar de Sicília, a roupagem transparente de um anjo, que o chamava de lá. Era isso a sua estrela; seguia-a indiferente a tudo mais que o cercava, via-a somente, só ela, luzir no fundo negro do seu futuro, como farol de única salvação possível.
Alvo, farol ou estrela, apagassem essa esperança e a vida para Miguel seria toda trevas e gelos.
– Roubem-na, pensava ele, e esta vida não será mais que uma enorme sepultura.
Castor dormia profundamente aos pés do amo.
– Pronto, patrãozinho! – disse Sombra da Noite, chegando a casa.
– Podemos ir?
– Quando quiser – respondeu o pescador, tomando do chão a torcida
acesa.
Miguel tomou o capote de um prego donde estava dependurado e,
embrulhando-se, saiu, acompanhado de Castor, que, rápido, lhe tomou a frente e desceu a ladeira.
Sombra da Noite fechou por dentro a porta com a tranca de nogueira, foi ao outro quarto e fez o mesmo à porta do fundo e, depois de apagar o pavio, pisá-lo e metê-lo na algibeira, afastou de um canto do teto o choupo e, espremendo-se pela estreita abertura, saltou fora, exclamando:
– Até a volta, se te encontrar viva ou se eu não estiver morto! Em cinco minutos, alcançou Miguel.
Chegados à praia, o homem tomou nos ombros o artista e carregou-o para bordo. Castor seguiu-os a nado.
Miguel agarrou-se ao portaló e pulou no barco, estendeu depois um braço e puxou Castor para dentro; o cão entrou todo a sacudir-se, salpicando água do corpo. Sombra da Noite foi o último e fechou o portaló; em seguida, voltando para Miguel, apresentou-lhe o barco e os seus arranjos, explicando a serventia disto, elogiando aquilo, falando de tudo e dando a entender que tinha consciência do bom desempenho da sua comissão. Miguel distraidamente passeou a vista pelo interior do barco e declarou-se plenamente satisfeito.
Suspendeu-se a amarra, guindou-se a vela grande. O barco começou a embalar-se, movendo-se a princípio com dificuldade, como se tivesse acordado naquele instante, parecia mesmo que se espreguiçava; logo, porém, cedeu ao leme de Sombra da Noite, virou a favor do mar e entrou a navegar com vento em popa.
Partiram.