CAPÍTULO 06 e 07
ROMANCE DE: Aluísio Azevedo
CLASSIFICAÇÃO:
6
Há dois anos estava Maffei em Rezina.
Há dois anos cartas impregnadas de certo cheiro de prosperidade vinham alegrar a família do pescador e sobressaltar o ânimo do pobre Miguel. Contudo, a casinha branca continuava naquela ignorada e encantadora solidão; agora, porém, as oliveiras deixavam apodrecer o fruto nos galhos, o lagar dormia ocioso e as redes da pesca não viam água salgada desde muito tempo.
Fazia uma noite deliciosa. Uma dessas noites sem lua, em que a frouxa claridade das estrelas povoa o campo de poesia e amor.
O relógio de S. Tiago badalejava, pausada e religiosamente, o toque do crepúsculo, quando Miguel, com a sua rabeca debaixo do braço, seguia abstraído pela orla do caminho, que ia dar à casinha branca.
Em breve atravessava o patamar de pedra da casa do pescador, e descansava vagarosamente sobre a mesa a rabeca e o chapéu de feltro de copa alta.
Ângela e Rosalina correram ao encontro do recém-chegado.
– Boa noite, Rosalina! Como passou, mãe Ângela?
As duas responderam familiarmente a este cumprimento.
– Senta-te aqui, Miguel – disse Rosalina, arrastando uma cadeira de pau, enquanto do fundo da casa, um cão, uivando amigavelmente, veio cheirar os pés e as mãos do artista.
Fica visto por esta recepção que aquela visita não era novidade para nenhum dos três.
Miguel sentou-se, sem cerimônia, ao lado de Rosalina; Castor, o cão, veio deitar-se-lhe aos pés, encostando-lhe humildemente a cabeça nas pernas.
Depois de algum silêncio, entabulou-se entre os dois moços uma dessas conversações fúteis .e agradáveis, cujo segredo só possuem os namorados. Falavam baixo, descansados e desapercebidos de tudo; falavam nimiamente por se ouvir um ao outro, com o egoísmo dos amantes, mas sem afetação nem constrangimento.
Qualquer coisa que dizia Miguel, tinha muita graça para Rosalina. O menor gracejo do artista fazia-a mostrar os dentes claros e a língua vermelha em uma das suas francas e sadias gargalhadas.
– Tocas-me hoje o teu Sonho? – perguntou ela, em seguimento da conversa.
– Tocarei, depois da leitura, mas trago-te uma música nova.
– Feita agora?
– Concluída hoje; já estava principiada há mais tempo.
– A quem é dedicada?
– Que pergunta! A quem poderia ser?
– A mim! – disse Rosalina, feliz.
– E sabe como se chama? – perguntou Miguel.
– Como é?
– Teu nome!
– Rosalina?
– Não! Teu nome!
– Ah! – fez rindo a moça. – Já sei, o nome é: Teu nome!
– Exatamente!
– Ora! O que se chama, Teu nome, por bem dizer não tem nome.
– Tolinha!… Queres que o mude?
– Não!… – disse meigamente sorrindo Rosalina.
– Então! Senhor Miguel! Não temos hoje leitura? – perguntou Ângela, colocando a mão aberta sobre os olhos para poder enxergar o interrogado.
Este respondeu, levantando-se e indo tomar um livro de um armário de pau, pregado na parede; depois, assentou-se defronte da velha, que, junto à mesa, cosia ao clarão da luz do azeite.
Rosalina foi reunir-se ao grupo. Reinava o mais absoluto silêncio.
Miguel abriu com pachorra o livro, no lugar marcado por uma tira bordada, trabalho delicado de Rosalina, esfregou carinhosamente as palmas da mão nas folhas do livro, aberto de par em par; cruzou as pernas, enterrando os pés para baixo da cadeira, em que estava assentado; espevitou o pavio da candeia, e depois de fitar abstratamente a cabeça branca de Ângela, principiou, com a voz sonora e desembaraçada, a leitura de uns contos fantásticos, que faziam o enlevo da velha e de Rosalina.
A isto sucedeu completa tranqüilidade.
Com o interesse do romance, Ângela parara maquinalmente o trabalho e, firmando os cotovelos descarnados na madeira da mesa, ficava automaticamente a fitar, com o rosto apoiado nas mãos compridas e ossudas, o movimento regular dos lábios do leitor.
Dominada, como estava, pela mágica influência do livro, ligava indistintamente não sei que relação entre a fisionomia expressiva de Miguel e o assunto da novela; parecia-lhe que aquilo eram palavras e pensamentos dele, ditos e pensados ali, naquele instante; às vezes sentia vontade de abraçá-lo, quando a passagem lhe agradava, e ao contrário, revoltava-se, interiormente, por amor das transcendentes maldades dos tiranos do romance.
Choravam e riam silenciosamente as duas, conforme a situação. Tudo era interesse; até o próprio Castor parecia tomar parte na leitura, sofrendo resignado a vontade de ladrar contra as ruidosas lufadas do vento; ficava o pobre animal com a cabeça estendida e o olhar mole e sensual, a bater com a cauda de um para outro lado, com a uniforme oscilação de uma pêndula.
No meio deste silêncio, a voz grave e compassada de Miguel ecoava monotonamente nas quatro paredes de betume cinzento.
Terminada a leitura, conversavam os três sobre o enredo e o caráter dos personagens, que figuravam no romance, cujo desfecho Ângela com muito empenho profetizava.
Em seguida, Rosalina foi buscar a rabeca e Miguel executou expressivamente várias músicas de sua imaginação, não se esquecendo da última – Teu nome, que muito arrebatou e comoveu aquela a quem foi oferecida.
Com efeito desvanecia-se a rapariga com ser a inspiradora de tão belas concepções, e ficava enlevada, como a sonhar, bebendo pelo coração as melancólicas harmonias, que manavam do instrumento apaixonado.
Assim fugiam as horas tranqüilas e esquecidas da visita, até que os sinos de S. Tiago tocavam o silêncio; então descontinuava-se o recreio: Miguel despedia-se, beijando a mão da velha e a fronte da moça, e, depois de tomar o chapéu e a rabeca, partia cabisbaixo.
Ao sair o músico, fechavam logo a porta; a luz desaparecia da sala e as duas mulheres recolhiam-se para o mesmo quarto, onde rezavam e dormiam juntas; tudo isto era feito com cuidado e devagarinho, como se tivessem medo de acordar com o barulho a felicidade que se lhes agasalhara em casa.
Nas noites em que Miguel se demorava ou não ia como de costume, sentiam-se as duas mal e impacientes, e Rosalina encostava-se, então, cantarolando, às ombreiras da porta, e derramava, de vez em quando, um olhar de tristeza pela brancura do caminho. Enfim, o rapaz era já como pessoa da família; era, pelo menos, uma necessidade para ambas.
Aos domingos de primavera, o sol ao levantar-se às cinco horas já os via de pé e em caminho para a missa. Então aparecia sempre um pretexto para demorar-se o passeio, que os levava em geral pelas casas das amigas de Rosalina, onde Miguel era já conhecido e estimado.
O que possa asseverar é que o lenço, com que Rosalina assistiu à última missa, era presente de Miguel; e a gravata com que este no último domingo se enfeitara, era feitura das delicadas mãos da sua presenteada.
Era tudo harmonia e amor naquela casinha branca!
7
Chegara finalmente o verão com o seu cortejo de luz e de alegria; agosto surgira enfeitado e casquilho como um noivo campesino a cobrir de beijos e mimos a formosa ilha, sua noiva. Vinha alegre.
O céu, todo iriado, refletia no mar os seus mais belos cambiantes; as árvores, então bem cobertas e reverdecidas, derramavam no chão uma alfombra azulada, cheia de languidez e perfumes que encantavam; a brisa sussurrava morna e maliciosa um segredo de namorados; golpeadas de luz quente, as rochas erguiam-se do mar como uns belos monstros, enfeitados de diamantes.
Quanta atividade na terra! Quanta doçura no céu!
O canto saía espontâneo das gargantas e os sorrisos dos lábios, e de tal sorte se casavam no ar, que o canto parecia riso e o riso parecia canto! A luz enorme do sol caía filtrada dentro do coração, para aí abrir uma aurora de mocidade e saúde, a bondade vinha à superfície dos olhos como a água vem à superfície da terra; propagava-se como um som a alegria, e a gargalhada detonava como o eco desse som.
Pousavam nos colmos os passarinhos ou embalavam-se chilreando nas hastes flexíveis das videiras. Como uma boa notícia, as andorinhas cortavam a ilha em todos os sentidos; inquietas como a fortuna, ligeiras como a curiosidade, ora roçavam-se na terra para lhe dizer um segredo, ora molhavam na baía a pontinha negra da asa ou se desvaneciam no azul ilimitado do espaço.
No mar o quadro correspondia em movimento e beleza de colorido ao da terra.
O oceano vestira uma domingueira camisa de rendas espumosas.
Por todos e de todos os lados singravam as listras multicores dos barcos pintados de novo; a espicha vergava com a vela reverberante e cheia. Os pescadores, satisfeitos com a pesca da noite, cantavam anunciando o peixe; outros, já desembarcados na praia, estendiam as redes ao sol, arrastavam o barco, e punham-se depois a subir as granitosas ladeiras, suando, vergados sob o peso do resultado abundante das suas pescarias. O filhinho, mesmo pequeno, já ajudava o pai; metia-se de pernas arregaçadas no mar, para colher o cabo do bote e as redes; não o amedrontava a imponência do leão-marinho. Nas cabanas, as velhas concertavam o peixe e punham a mesa.
Era para ver o riso, o apetite, a felicidade, enfim! De repente divisou-se ao longe um barco estranho.
Diferente e maior do que os mais, tinha um ar sombriamente soberbo, que contrastava com a alegre singeleza dos outros.
Vinha como uma bala à queima-roupa!
Dir-se-ia um insulto alcatroado. A vela opada, amarelenta e inchada como o saco de couro de uma gaita de foles, lembrava ao mesmo tempo o ventre enorme de um cadáver que vai apodrecer.
Os pescadores olhavam-no ofendidos como para um intruso; indignavam-se com o vento e com o mar porque tanto o favoreciam. Tinham ciúmes, os bons pescadores, das suas águas e dos sopros das suas brisas.
Todavia o barco não diminuía de carreira. Chegou rápido ao porto, desceu a vela e atracou.
Um homem robusto e carrancudo, seguido de marinheiros e homens acarretados de malas, apareceu na praia e subiu com pé firme à cidade.
Os camponeses e pescadores olhavam-no com aterrada desconfiança; dentre eles alguns davam mostras de conhecê-lo, chegando até a falar-lhe. A tudo respondia secamente o recém-chegado.
Fez impressão nas rodas.
Instantâneo e curioso silêncio apoderava-se dos que o viam; não o largavam de vista; o – sujeito – era observado com respeito e reserva.
Os pescadores arriscavam com cuidado palavra a respeito dele, murmuravam medrosos, mesmo quando já não podiam ser ouvidos pelo – mau homem – e em segredo diziam: era um iettatura, que os livrasse a Madona do mau-olhado.
No entanto o do mau-olhado seguia indiferente o caminho da casinha branca e daí a meia hora Rosalina abraçava o pai.
Maffei tinha chegado.
Foi um alvoroto em casa. Ângela soltou uma exclamação religiosa e levantou os braços para o céu.
É sempre enternecedora a volta de um pai ao seio da família. Seja ele uma fera, nessa ocasião há de ser pai.
As palavras começadas, que não se acabam; o pranto, que assiste como um amigo da família; o cão, que fareja alvoroçado; tudo! tudo é enternecedor e santo!
Só Maffei não chorou nessa ocasião.
Acariciava, beijando a filha, porém sempre áspero e inalterável. Disse depois que estava cansado e que lhe dessem uma cama.
Enquanto dormia o aventureiro, Ângela agradecia a Deus o seu regresso feliz.
Rosalina, com os olhos ainda úmidos, remexia e examinava os objetos que lhe trouxera o pai.