08

– A caminho, meu amigo, disse Miguel a Castor. E puseram-se a andar com vontade pela estrada que ia dar ao povoado.
Castor ia na frente, sacudindo satisfeito a cauda, pelo compasso do andar cadenciado e ligeiro do cão quando leva destino; o artista atrás, triste, vergado, coberto de lama, sangrento, tiritando, mais se arrastava do que andava. Apesar do frio da madrugada que para o nascente alvorecia o horizonte, Miguel tinha a tomar-lhe a cabeça febre abrasadora; seguia com o peso aterrador de quem acabava de assistir nesse instante à transformação de sua ventura em um montão de ruínas.

Que poderia esperar mais, além das neves do isolamento? Rosalina desaparecera, isto é, fecharam-se todas as portas, janelas e postigos de sua alma por onde podia entrar a luz. E que seria das flores dessa pobre estufa, dessas flores tão cuidadosamente tratadas por ele entre os abrolhos de uma vida de necessidades e decepções, sem um único raio do sol que até ali as sustentara? Que seria delas com a ausência absoluta de Rosalina?
O amor é para a alegria, a esperança, a honra e a glória o que a luz é para as flores; em outras palavras o amor é o matiz, o perfume, o frescor e a vida de nossos sentimentos.
As flores não podem vingar nas trevas.
Assim pensava Miguel quando chegou com o companheiro a casa.
O sol tinha se erguido de todo no levante; fazia um tempo magnífico. O moço empurrou a porta e Castor precipitou-se no interior do quarto, farejando os pobres trastes e o chão, em seguida, mordendo
satisfeito a cauda e as patas, pôs-se a ladrar para a rua.
Desde esse dia viveram os dois amigos em íntima e completa harmonia – nunca se separavam, comiam juntos e dormiam perto um do outro.
Três meses depois do incêndio Miguel teve noticia de uma família que precisava de um professor de música para quatro crianças; apresentou- se e foi aceito.
De tal momento correu-lhe a vida mais fácil. Em pouco tempo, Miguel, cujos modos singelos e honestos atraíram incontinenti sobre ele a cega confiança e simpatia dos seus protetores passou de mestre de música a servir de preceptor, acompanhava por gosto os pequenos nos seus passeios e afinal já lhes tinha amizade.
O bom rapaz desvelava-se em dar aos discípulos mais instrução do que lhe competia e até, digamos, mais do que podia – estudava durante a noite para instruí-los pela manhã, com tão feliz êxito que às vezes gravava- lhe inalteravelmente na memória ainda fresca preceitos e fórmulas de literatura e belas-artes, dos quais se esquecia o próprio mestre, que os não decorava. E por este sistema instruía com cabedais alheios; era, por bem dizer, o instrumento dos bons livros, mas o fato é que os pequenos se desenvolviam e tanto lhe bastava.
Os rapazes adoravam-no.
Não há como as crianças para tomar amizade à gente, e com esta cresce em geral a dos pais; os dos discípulos de Miguel estavam encantados com a boa aquisição que haviam feito. Um dia chamaram em particular o jovem preceptor, e, depois de lhe manifestarem o quanto estavam penhorados pelos seus bons esforços e pelo seu bom caráter, o quanto desejavam que Miguel continuasse em companhia deles, declararam que haviam deliberado aumentar-lhe o ordenado e fazê-lo morar em sua companhia e sob as suas vistas e cuidados – que Miguel era só e adoentado; que era preciso ter mais cuidado com a saúde e terminaram franqueando paternalmente ao professor um quarto cômodo e decente.
No dia imediato Miguel e Castor estabeleciam-se em casa da família

L…
Tinha por conseguinte o artista todos os elementos de uma felicidade
relativa – teto, cuidados e estima, agora possuía por bem dizer uma família; entanto, tristeza contínua e carregada pesava-lhe deveras sobre o coração como a garra negra de um abutre. Embalde esforçava-se por esquecer de todo o pretérito e viver só do presente; embalde tentava plantar novas flores no terreno ressequido de seus afetos, que logo não rebentasse aí, sangrentas e truncadas, as raízes de sua antiga fortuna, porventura mais persistente e volumosa depois que se convertera em infortúnio.
E neste definhar amargurado via ele cair um após outro, no passado, os seus dias pálidos e saudosos, sem risos nem esperanças.
De todos procurava informar-se a respeito de Rosalina, e ninguém o esclarecia; da ilha haviam todos perdido de vista o pescador Maffei. Entre o homem rude e o homem rico abrira o ouro largo espaço. De um lado não se conheciam os que estavam do outro.

09

E no excogitar doloroso da saudade decorreram dois anos de desesperança, sem que fosse dado ao artista ter notícia da sua amada.
Já não parecia o mesmo – tomara-se trabalhador e grave. A vigília e o estudo avivaram-lhe na fisionomia os clarões da inteligência, com a mesma intensidade com que as sombras de constante tristeza lhe anuviaram no olhar a mocidade e o riso.
Bela e pensadora cabeça, quem te burilou tão sublime: a arte divina do homem ou a mão humana de Deus?
Muitas vezes o viam passar sombrio e automático, seguido dos seus discípulos e do cão, em tais momentos pendia-lhe para a terra a cabeça, como quem procura um canto onde descanse o último sono. E as pobres criancinhas, coitadas! Olhavam para o mestre com os pequeninos corações estremecidos; as louras sensitivas choravam porque o viam chorar.
Num destes passeios chegaram às ruínas da casinha branca; massa informe de pedras e barro denunciavam apenas o lugar onde crescera e brincara Rosalina. Era tudo enegrecido pelo fogo e silencioso pelo abandono; somente além, para as bandas do mar, por entre o sussurrar das oliveiras, um pescador velho se lembrara de construir a sua choupana.
Derramava-se a hora do crepúsculo e da tristeza; os últimos clarões do dia abraçavam as primeiras sombras da noite – carícia contraditória da luz e da sombra.

Nada enternece tanto como, depois de algum tempo, voltar ao berço de nossa primeira felicidade; também não há decepção comparável à que experimentamos ao topar arrasado esse ninho de recordações e saudades. – Procurar um abrigo e tropeçar em ruínas, procurar um berço e despenhar-se na cova! Todo aquele nada respirava aniquilamento e tristeza; contudo, parecia haver uma voz mágica e sobrenatural que, semelhante aos fogos- fátuos dos cemitérios, se sobreerguia trêmula e duvidosa das ruínas.
Miguel, hirto e arrebatado pela influência do fluido que exalavam os restos carbonizados da casinha branca, pascia neles o olhar ansioso, procurando compreender a voz misteriosa das ruínas, com a atenção de um setuagenário que procurasse soletrar na confusa inscrição de uma lápida, gasta pelo tempo, o nome do seu primeiro afeto.
E o seu olhar investigador, e o seu gosto cheio de interesse e ternura, e o som trêmulo das suas palavras quase inarticuladas, parecia dizerem:
– Que é feito de ti, minha ventura?… Coração que por mim palpitaste teu primeiro amor; lábios que me falastes com a primeira mocidade; olhos que me seguistes com o primeiro cuidado! Aonde fugistes vós?!…– Sorrir! Como te deixaste esmagar pelas ruínas? Lágrimas! Como as beberam as línguas do incêndio? – Crença, foge! Coração, cala-te!… E o teu? O teu coração, minha Rosalina? Estará em ruínas como o teu berço, ou brilhará porventura mais feliz e mais virtuoso, ao clarão tranqüilo e honesto do lar e da fortuna?! Se assim não for, se te não prendeste a uma sorte invencível, volve! Que de muito te aguardo impaciente; se não te esqueceu a nossa passada ventura, pensa em mim, que to retribuirei com amor de escravo; e se eu morrer, esquecido e abandonado de todos, sem que aos meus olhos seja dado refletir a ternura dos teus, no momento extremo – chora meu amor, chora que Deus recolhe as lágrimas que os anjos cá da terra derramam nas sepulturas.
E assim cismava Miguel – imóvel, chumbado às ruínas da casinha
branca, pasmando as quatro criancinhas, que sobre ele passeavam admiradas os seus olhares de auroras.
O artista cobriu o rosto com as palmas das mãos e rompeu a chorar soluçadamente.

10

Os pequenos continuavam aterrados sem se animarem a proferir palavra, até que o mais velho deles, Beppo, aproximando-se de Miguel, abraçou-o pela cintura, dizendo em voz baixa e tímida:
– Por que está chorando, meu mestre?
Para as crianças, corações lógicos, onde não medrou ainda desconfiança nem experiência – chorar é sinônimo de – sofrer. O menino imediato a Beppo imitou o irmão; este foi imitado pelo outro menor e finalmente pelo pequenino, que se contentou em dizer, terna e familiarmente:
– Não chores!…
Puxado pelo fio de ouro destas palavras, Miguel voltou a si, assentou-se comovido num pedaço de parede, cobrindo de beijos a cabecinha loura de Jeovanito.
A gente, não sabemos por quê, depois de muito chorar e lastimar-se, sente apetite de beijar e abraçar alguém; queremos crer que é na adversidade que se fortalecem mais os corações, e se corroboram os afetos
– ligam-se tão bem as lágrimas e o amor e formam tão imperecível betume, que vencem resistir às borrascas destruidoras da vida e aos gelos mortíferos da ausência e da idade. De tal sorte, que Miguel daquele momento sentiu-se amar ainda mais os discípulos; e, como o amor é sempre uma luz, a claridade chegou-lhe ao gesto volatilizada num sorriso de alegria. As quatro crianças entravam-lhe com alvoroço pelo coração, como um bando de passarinhos alegres num templo abandonado e sombrio.
– Meu mestre! – disse Beppo, passando o braço pelo ombro do artista
– por que razão você desde que chegou a este montão de pedras está tão triste e chorando?
Francino, o imediato àquele, atalhou, sem dar a Miguel tempo de responder:
– Ora essa! É porque aqui morreu alguém!
À palavra – morreu – Jeovanito voltou-se rapidamente e disse, arregalando muito os olhos, belos, como são sempre os olhos de uma criança:
– Morreu? De que foi que ele morreu?…
– Não sei… disse muito naturalmente Angelino, metendo as mãozinhas gordas nas algibeiras dos calções, com certo ar de autoridade.
Nisto, Jeovanito, que se tinha afastado um pouco dos irmãos, voltou- se aterrado, e, apontando para o sul com o seu dedinho cor-de-rosa, exclamava, contente por chamar a atenção de todos:
– Olha! Olha! Um velho! – E batia palmas alegremente assustado. Efetivamente, um vulto alto e curvado, que subia a encosta,
debuxava-se de negro na derradeira claridade do horizonte.
Aquela aparição produziu um mau efeito no ânimo dos pequenos. O crepúsculo dava-lhe o jeito fantástico de uma sombra, que saía aos poucos do mar e cujos contornos se iam desvanecendo no azul amortecido do céu.
Silenciosamente caminhava o vulto para eles e, à proporção que o fazia, os meninos conchegavam-se mais de Miguel.
– É o misterioso habitante da choupana, calculou o professor, e não se enganara.
Este homem, digamo-lo de passagem, era um antigo pescador, conhecido em Lípari pelo cognome de – Sombra da Noite. Tinham-no por milagreiro e na ilha atribuíam-lhe toda a casta de feitiçarias e malefícios, que sói imaginar a ignorância do povo. Em bom tempo fora companheiro de trabalho e amigo de Maffei, a quem, por amizade e talvez mais acertadamente por interesse, arranjara os meios de transportar-se em segredo para Nápoles, na mesma noite do incêndio da casinha branca. Esta boa ação rendeu-lhe em recompensa o direito de ocupar enquanto vivesse o terreno de Maffei em Lípari e tirar dele, como das oliveiras, o partido que bem lhe aprouvesse.
Rosalina, se bem que por esse tempo tomasse Miguel por morto, levava o coração ainda morno do amor de seu companheiro de infância; como uma parede que durante o dia recebesse sol forte e abrasador, e à noite, apesar da ausência daquele, conserva uma certa dose de calor, que pouco e pouco vai morrendo, assim se esqueceu ela de que podia arriscar o pai e para logo encarregou Sombra da Noite de se instruir sobre o resultado de um cadáver que necessariamente havia de ter aparecido na costa pelo dia seguinte à sua viagem.
Sombra da Noite não se deslembrou da incumbência, porém o cadáver não apareceu. No fim de um ano de pesquisas foi a Nápoles e tagarelou um pouco com a mãe Ângela; de volta à ilha o pescador, ligando o sentido das palavras desta com o da recomendação de Rosalina, concluiu por descobrir que se tratava do cadáver de Miguel, a quem conhecia vagamente.
– Disto me pode vir algum resultado vantajoso – dizia ele consigo e procurava um meio de falar a Miguel; a ocasião porém não se oferecia. Vendo-o agora, Sombra da Noite sentiu um estremecimento e tratou de aproveitar o lance. – Nada de precipitações, com os diabos! E parece que bispo enfim o meu cadáver.
Pensando assim, Sombra da Noite aproximava-se silenciosamente do grupo, que o observava também em silêncio. Chegou às ruínas, trepou-se com agilidade de moço pelos barrancos e, equilibrando-se, alcançou finalmente a extremidade oposta, onde estava Miguel, a fitá-lo com suma curiosidade.
Sombra da Noite abeirou-se dele, cortejou-o, descobrindo-se humildemente.
Era o tipo perfeito do lazzarone – macilento e esfarrapado, sujo e feio, falando um dialeto extravagante; grande chapéu de abas largas sobre a nuca e cachimbo queimado no canto da boca.
Os pequenos estavam horrorizados.
– Boa noite, disse Miguel.
– Deus Nosso Senhor lhes dê a mesma, meu senhor e meus ricos meninos – respondeu Sombra da Noite, mastigando compassadamente estas palavras e estendendo a mão para acariciar a menor das crianças.
Jeovanito fugiu com a cabeça, olhando de esguelha e procurou refugiar-se nas pernas do mestre.

– Então? – disse este. – Fala, Jeovanito! Não vês que te fazem festa?…
– Boa noite, meu velho – disse Jeovanito, mais tranqüilo.
– Este é seu filhinho? – perguntou o pescador, passando a mão grosseira pela cabeça loura do pequenito.
– Não, senhor. São todos meus discípulos.
– Ah! Estão de passeio?
– É verdade – disse Miguel, e levantou-se, segurando as mãos das duas crianças menores. – Íamos já, quando o senhor chegou.
– É pena, com os diabos! disse Sombra da Noite, porque eu desejava falar-lhe sobre alguém que morou neste lugar.
Miguel sentiu-se fulminado – era a primeira vez, desde que se separara de Rosalina, que alguém lhe falava nela, e voltando rapidamente para o pescador:
– De Rosalina?! Oh! Diga, diga depressa! Como estão eles? São felizes? Ricos?
– Riquíssimos e muito felizes, digo-lhe mais… em breve serão nobres!…
– Nobres?!…
– Pois então? A excelentíssima senhora dona Rosalina vai casar-se com um fidalgo de muita boa linhagem e de muito bom dinheiro!
– O senhor está gracejando! Não pode ser! – disse Miguel, fingindo tranqüilidade.
– Gracejando? – berrou o homem. – Pela Madona o juro eu! – e beijou a palma da mão.
Miguel sentia-se horrivelmente oprimido – tinha vontade de continuar o interrogatório, mas ao mesmo tempo temia ouvir alguma verdade inédita, que o esmagasse de todo; temia uma explosão de dor atacara-lhe logo uma sensação nervosa e frenética; uma dubiedade de mulher grávida; latejavam-lhe as frontes, como contundidas por este dilema de ferro – calar-se, nada ouvir sobre Rosalina e sofrer – ou ouvir muito, saber tudo e sofrer mais. O coração saltava-lhe dentro como uma rã no charco; acometiam-lhe desejos extravagantes e inexplicáveis. Sentia-se com apetite de ser um homem mau, desregrado e inútil; tinha como um prazer de ouvir dizer mal de Rosalina e ao mesmo tempo ardia por esbofetear aquela sombra impertinente que tinha defronte de si, o pescador; porém aquele homem era o primeiro que, no seu exílio, lhe falara sob Rosalina; então tinha vontade de abraçá-lo.
Estava triste, mas estava alegre; desejava cantar, mas soluçando;
desejava abraçar Sombra da Noite, mas estrangulando-o.
Temos às vezes dessas contradições no nosso espírito, que, expostas assim, parecem disparatadas e absurdas.

Qualquer resolução todavia atravessou como um relâmpago o cérebro do artista – cruzou os braços e fitou Sombra da Noite.
– Tem certeza do que está dizendo?
– Tenho – respondeu com firmeza o pescador – tanta quanto tenho de saber que falo com o senhor Miguel Rizio.
Miguel tornou a estremecer; agora, porém, era a idéia da raiva de Maffei que lhe surgia negra e ameaçadora. Seria isto uma cilada? Estaria aquele homem pago por ele? Miguel desconfiava, mas ardia de curiosidade; finalmente, descendo de seu espasmo, disse descansadamente e afetando o mais frio desinteresse:
– Com quê, o senhor conhece-me?
– Perfeitamente, cavalheiro, e até desejo falar-lhe.
– A respeito de Rosalina?
– Sim, senhor, a respeito de dona Rosalina.
– Então fale! – disse Miguel já não se podendo conter. Fale que…
– Agora é impossível.
– Então quando?
– Quando estivermos a sós. Eu moro naquela choupana. E Sombra da Noite indicou a casinha que quase já se não divisava. – O senhor pode procurar-me aí. Quer vir amanhã?
Miguel não respondeu. Tinha a cabeça baixa e o queixo descansado na mão direita.
Depois de um quarto de hora, Sombra da Noite quebrou o silêncio
– Então vem?
Miguel ergueu resolutamente a cabeça.
– Venho!
– Amanhã?
– Não! Hoje?
– Pois até à meia-noite, disse o pescador, dando-lhe as costas e descendo as pedras. Daí a pouco tinha desaparecido nas trevas.
Miguel continuou a olhá-lo por algum tempo; depois sacudiu os ombros e tornou a tomar as mãos dos pequenos.
Meia hora depois, caminhavam pela estrada. Na alma tenebrosa do artista, após tão longa noite, raiara afinal um clarão triste, de desesperança e despeito, mas era uma luz, enfim.
E como a mariposa que festeja a própria luz que a há de queimar, começou a alvoroçar-se, cantarolando nervosamente.
As crianças, tomando aquele cantar por expansão de alegria, abriram também a imitá-lo, até chegar a uma cocheira, onde tomaram um carro que os levou alegremente a casa.

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