CAPÍTULO 11 até 14

ROMANCE DE: Aluísio Azevedo

CLASSIFICAÇÃO:

11

A casinha branca ficava situada em um dos extremos da ilha, para as bandas do nascente.
Era um ponto magnífico.
A modesta e simpática vivenda olhava de frente, podemos dizer, sorrindo, para a estrada, que conduzia ao centro povoado da ilha; do fundo saía-lhe correndo, em distância de seiscentos passos, a nossa já conhecida alameda de oliveiras, cujo solo formava um declive suave e fértil, plantado de ambos os lados, com variedade e gosto, até onde o terreno ia pouco a pouco se tornando mais íngreme e estéril com a vizinhança do mar.
Então principiava uma ladeira pedregosa, que ia acabar, em grande distância, numa ampla e formosa praia, de areias claras e batidas livremente pelos ventos.
Do lado direito, avizinhava-se o mar, entre o qual e a casa interpunha-se somente uma clareira, onde Rosalina costumava sentar-se à tarde, e uma moita de espinheiros, espécie de cerca natural, que ali entrançara a natureza, para servir de ameias, que resguardassem as bordas perigosíssimas desse lado.
Do esquerdo, o espaço entre o mar e a casa era desproporcionalmente maior, porém menos cultivado e coberto de uma vegetação enfezada e má. Por entre esse mato nascia uma picada, tão irregular e confusa, e tão dificultada pelos abrolhos e sarças, que quase não se deixava perceber; e tanto mais ingrato era o solo, quanto mais se afastava da casa.
Perto desta era a terra cultivável e solta, mas ia gradualmente se tornando calcarífera até chegar ao estado de pedra, à proporção que se aproximava das bordas da ilha, terminando por um pedregulho alcantilado, inteiramente liso e escorregadio, pelo salpicar constante do pó úmido das vagas, que se despedaçavam contra ele.

A rocha ficava a pique sobre o mar, um precipício medonho! Nas noites claras do estio, alguém que trepasse à penedia até galgar os alcantis aprumados e reluzentes, abrangeria, só com um abraço de olhos, a imensidade dos horizontes celestes e marinhos; e se, chegado à borda do abismo, se debruçasse um pouco sobre a ingremidade da rocha, julgar-se-ia solto no espaço, sem ligação alguma com este mundo e só preso a Deus pelo espírito.
Então sentiria debaixo dos pés os soluços espumosos das ondas, e sobre a cabeça a linguagem enérgica do nordeste, revelando à natureza adormecida os mistérios de criação dos mundos.
E o mugir dos ventos e o rugido colérico do mar lhe pareceriam nesse instante de transporte, o resumo supremo de todas as forças, de todas as paixões, de todas as virtudes, de todos os vícios, de todas as tempestades dos homens e de todas as tempestades dos elementos; chegar-lhe-iam ao coração como o índex fabuloso do universo.
Assim, medonho e belo, era o lado esquerdo da casinha branca, o que o tornava desprezado e quase ignorado, a não ser pelas gaivotas e outras aves aquáticas, que lá subiam nesses cumes, à procura do pouso e da solidão.

12

Tinha começado o inverno e, apesar disso, a noite marcada para a entrevista dos dois amantes era tão serena, que faria chorar de inveja a vaidosa primavera.
Nem uma nuvem perturbava o aspecto ingênuo e puro do céu.
As oliveiras solitárias e esguias, como toda a vegetação de Lípari, em virtude da leveza da atmosfera, beijavam-se volutuosamente, impelidas pela brisa fresca do mar, e projetavam no chão, contra a luz da lua, uma sombra de triplicado comprimento.
O vento estorcia-se, uivando como um doido de asas e redemoinhava em torno das oliveiras, cujas sombras desenhavam na aspereza do solo fantasmas singulares e monstros extravagantemente disformes.
Às vezes o doido mudava de rumo e quebrava no ar o murmúrio das cantigas dos pescadores, que estendiam a rede do lado do poente.
E assim vagavam, soltas e desarticuladas no espaço, vozes confusas e disparatadas.
O mais dormia silenciosamente.
A casinha branca parecia, ao luar, embrulhada com frio, num lençol de linho alvo.
A lua aborrecia-se, coitada! No seu eterno isolamento!

13

Por volta das dez horas da noite um barco costeava a ilha pelo lado da praia.
De vez em quando o vento, caprichoso e vadio, trazia de rastros alguns fragmentos de uma bela barcarola, que necessariamente vinha do barco. Eram as notas de uma chorosa rabeca, espécie de harmonia chorada, ou melhor, de pranto harmonioso. O certo é que, música ou pranto, doía à gente ouvir soluçar daquele modo. Se fosse possível fazer do coração um instrumento e tangê-lo, com certeza havia o som de ser o mesmo que então se ouvia.
O barco vinha-se aproximando lentamente da praia, e lentamente ia- se calando o instrumento; daí a pouco paravam ambos, e um vulto de homem, com ares de pescador, soltando o ferro, pojava na areia.
O barqueiro depositou a rabeca sobre um dos bancos de seu barco, conchegou melhor o capote de pescador e, dando alguns passos pela praia, encarou a silenciosa ladeira, frouxamente clareada pelo luar. Miguel não faltara à entrevista, porém, temendo vir pela estrada e ter que passar pela porta de Maffei, resolvera entrar pelo fundo, disfarçado em pescador; precauções necessárias para não ser descoberto pelo pai de Rosalina. O mar sempre era mais seguro.
Posto em terra, atravessou o espaço, compreendido entre a água e a ladeira e deitou a subir cautelosamente.
Subiu sempre até encontrar a primeira árvore; aí parou e ficou a escutar.
Era tudo absolutamente silencioso.
Miguel encostou-se ao tronco da árvore e esperou.
Sentia-se mal, o pobre moço! Desde que recebera o bilhete de Rosalina, meditava um meio de salvar a situação, e, por mais que desse voltas à cabeça, nada descobrira.
Agora, prestes a vê-la, encostado à oliveira, com o cotovelo direito na mão esquerda e com a outra escondendo o rosto, fazia castelos magníficos e desfazia-os, com a mesma facilidade. Imaginava as coisas mais absurdas, os projetos mais irrealizáveis.
Lembrava-se de raptar Rosalina, fugir com ela para qualquer parte; ou empregar-se em Rezina, como operário, e especular, como fizera Maffei; ou deixar-se morrer; ou matá-la.
Enfim, mil outras idéias deste gênero encontravam-se, debatiam-se, a morderem-se sangrentas, no cérebro molesto do pobre rapaz, como, na mesma pátria, irmãos se devoram e matam em tempo de guerra intestina.
Assim permanecia ele estático, com o rosto escondido na mão esquerda, invejando interiormente a tranqüilidade feliz da natureza, que parecia adormecida a sonhar amores.

– A terra, essa boa mãe – pensava ele – também tem um coração: às vezes parece sofrer, porque geme; sentir alegrias, porque ri; amar, porque soluça; enfim não podia deixar de ter um coração, porque é mãe.

14

Enquanto Miguel, encostado à árvore, era todo meditação e cismar, do alto indeciso da ladeira alvejava um vulto trêmulo, cujas roupagens flutuantes se desvaneciam nas sombras transparentes da noite.
O coração do moço estremeceu, como o ferro quando se avizinha o ímã: era Rosalina que se aproximava.
Com aquela cega e santa confiança, que as singelas camponesas têm em si, com o desamparo dos corações que não se arreceiam das trevas nem da luz, descia a ladeira, descuidosa, a filha do pescador, procurando descobrir nas sombras o vulto querido do seu amante.
Assim que o divisou, deitou a correr francamente para ele com os braços abertos.
Mais parecia descer voando, que correndo; Miguel com os olhos do coração via-lhe as asas, que a amparavam no vôo.
O vento, repuxando-lhe para trás as saias e os cabelos, contornava- lhe a redondeza correta da cabeça e as curvas volutuosas e macias do corpo; era como se a mão invisível de um gigante a segurasse por trás, e pouco e pouco a viesse aproximando dos lábios de Miguel.
Nessa ocasião para ele Rosalina mais que nunca parecia um anjo; para os amantes – vir de cima – é sempre baixar do céu quando se trata do objeto amado.
Era aquilo um descer vertiginoso e quase fantástico: as pedrinhas do chão desprendiam-se e rolavam com ruído até à praia; os belos e adestrados pés de Rosalina corriam pelo solo conhecido, com a facilidade com que deslizam pelo teclado os dedos de um mestre de piano.
Atravessando a alameda, ora recebia em cheio o luar pelos claros da folhagem e pelos espaços de entre as árvores, ora se cobria rapidamente de sombra, para reaparecer logo na luz. Miguel correu ao encontro de Rosalina, recebendo-a em cheio nos braços.
Vinha ofegante de cansaço, e nesse estado se abandonava de si, para de todo se entregar negligentemente aos braços do amante.
Assim ficaram por algum tempo silenciosamente abraçados; ela a respirar sofregamente e ele a fartar-se de vê-la, queimando-a com esse olhar, que parece o reflexo vermelho do incêndio que vai pelo coração.
Desabraçaram-se para segurar as mãos um do outro; os amantes, quando sós, nunca têm as mãos ociosas.
– Oh! Como estão frias! – disse Rosalina, tomando entre as suas as de Miguel.

– Tenho-as frias como tenho despedaçado o coração. Não há calor nas ruínas! – volveu tristemente Miguel e recolheu-se a cismar; porém, pouco depois, tomado de súbita agitação, ergueu com força a cabeça e rompeu a falar desordenadamente, como se a dor, que desde a véspera prendera em ferros, rebentasse à vista de Rosalina, medonha e troadora, rompendo cadeias, violando represas.
– Ouve, Rosalina! Eu tinha uma fortuna, uma esperança, uma alegria, uma única felicidade, desde o principio de minha vida, isto é, desde que te conheço, meu amor! Teu pai entendeu para si de transformar numa chaga sempre aberta isso que era o meu único sorriso. Vais partir para Nápoles e vais rica; conheço bem os costumes dessa cidade: são maus e perigosos, principalmente para os ricos! Serás porventura a mesma quando lá te vires, cercada de opulência e de aduladores?… Essa dúvida é que me mata!…
E soluçou.
– Miguel!…
– Tenho medo, minha Rosalina; pode muito a ausência! Tenho medo de que te esqueças por uma vez do pobre artista! E que seria de mim se me deixasses de amar? Desaparece, e nada mais aqui fica que me aproveite! Apaga a luzinha que conduzia o viajante, e vê-lo-ás perdido; toma o cajado ao cego, e vê-lo-ás cair; priva do sol a planta, e vê-la-ás murchar; arranca do desgraçado a crença em Deus, e vê-lo-ás sucumbir. Pois bem! Tu és a estrela que me guia ao futuro, o cajado que me ampara na vida, a luz que me dá crenças e a crença que me dá forças. Desaparece e eu cairei nas trevas e morrerei sem crenças! Repito, Rosalina! – disse Miguel comovido e enxugando as lágrimas – Repito! tenho medo que te esqueças para sempre de mim!
– Não, meu amigo, não me é mais possível esquecer-te – volveu a moça, conchegando para si o amante e passando-lhe os braços em volta do pescoço. – O amor que te tenho, meu amigo, não entrou neste coração já feito e desenvolvido, não! ele aqui nasceu, fecundado por ti, foi pequenino e hoje está crescido, eduquei-o pouco e pouco, como se educa um filho querido, que sai de nossas entranhas; amamentei-o com a minha primeira esperança; alimentei-o depois com a tua dedicação; santifiquei-o ao calor religioso de teus sacrifícios e finalmente robusteci-o ao clarão vivificante do teu talento. Amei-te, porque és nobre, forte e dedicado! Hoje o nosso filho querido, o nosso amor é dono absoluto de mim; o coração, com a fraqueza de mãe, habituado a fazer-lhe todos os caprichozinhos, já não reage. E parece-te que eu seria capaz, que poderia, ainda se quisesse, enxotá-lo de casa? Não sabes que depois da recusa de meu pai eu mais e mais te quero? Oh! Mas ele consentirá em tudo! Meu pai é bom e ainda não te conhece bem; logo que assim aconteça, gostará necessariamente de ti. E muito mais sabendo que eu te amo tanto e tanto!
E dizendo isso, Rosalina cada vez mais estreitava o amante com carinho.
E ele, com os lábios juntos aos dela, sentia caírem-lhe dentro aquelas palavras como beijos incendiados.
Todas as trevas de seu passado dispersaram-se espavoridas como um bando de aves negras ao contato da luz daqueles beijos. Sentia-se novamente feliz, dessa felicidade, ou talvez, dessa vaidade que enche os corações ainda moços e enamorados, quando embevecidos recebem dos lábios da mulher amada a confirmação da própria fortuna. E assim foi que Miguel, possuído do inesperado contentamento, rindo e chorando, murmurou em segredo a desordem junto aos ouvidos de Rosalina:
– Fala! Fala! Meu amor! Continua a dizer dessas coisas! Enlouqueço de te ouvir dizer assim a nossa felicidade! Dize! Dize que me amas muito e que me amarás sem fim!
E o roçar dos lábios dos amantes desprendeu um beijo, semelhante à chispa, que o atrito do ferro levanta da pedra.
Uma faísca é sempre perigosa: pode fazer explosão.
Súbito, um jato de luz vermelha inundou rápido o grupo abraçado dos dois amantes.
Se Satanás existe, deve ser dessa cor a sua auréola.
Rosalina soltou um grito horrorizada, grito igual ao da cotovia ao sentir a bala do caçador, e caiu sem sentidos nos braços de Miguel, que, imóvel, hirto, chumbado à terra, parecia uma estátua de bronze, tendo nos braços uma mulher bela e pálida, de uma beleza e de uma palidez de mármore.

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