CAPÍTULO V

UMA OBRA DE: Júlia Lopes de Almeida

ORIGNAL: 1908

Argemiro ouvia um constituinte no seu escritório da rua da Quitanda. A causa era chocha; o homem expressava-se mal, perdendo palavras sobre palavras. O advogado deixava-o falar, olhando silencioso para os raminhos azuis do papel reles, como se pedisse às paredes encardidas a paciência de que deviam estar impregnadas.
Efetivamente, toda aquela casa, onde o cupim voraz trabalhava de parceria com os médicos especialistas, advogados e solicitadores, parecia derrear-se ao peso da sabedoria e da malícia.
À noite, fechados os escritórios e cubículos, os ratos, passeando por aqueles corredores e alcovas desertas, comentariam as chicanas, as mentiras e os segredos com que a ciência transfigura a verdade e uns homens enganam os outros… E não seriam poucos os ratos, porque às vezes, mesmo em plena luz do meio-dia, surgia de qualquer canto obscuro o focinhito agudo de um desses roedores mais curiosos, como a querer tomar contas do que se passasse; e a sua morrinha vagava na casa, de frente a fundo, enchendo-a como uma alma.
O constituinte de Argemiro voltava ao princípio da sua exposição; temia ter esquecido algum detalhe precioso, e a consulta era cara… Foi num desses pontos de repetição que o criado apresentou ao advogado um cartão da Pedrosa.
– A mulher do ministro!
Argemiro abotoou o colete de fustão e prometeu ao homenzinho que faria tudo por ele, mas que se fosse embora!…
O outro atropelou as últimas perguntas e marcou nova entrevista.
Através da meia parede de tabique ouvia-se, na sala próxima, o frou-frou das sedas abafadas em lãs e um sussurro de vozes femininas. Logo, a Pedrosa não viera só… Argemiro não a via desde a noite em que fora cumprimentar o marido pela sua nomeação. Que a traria ali?
O aroma do Bouton d’or introduzia-se pelas frinchas das portas, invadindo tudo, soberanamente.
Argemiro considerou aquele aroma como muito indiscreto, mas gostou.
A Pedrosa afinal… Ora, com que então estava no seu escritório a mulher do ministro!… ele ajeitou o nó da gravata e foi recebê-la à porta. Ela entrou logo, com o olhar repreensivo, o busto empertigado e um sorriso amigo na boca descorada. Atrás dela vinha a filha, muito espigada, mais alta que a mãe, com um arzinho petulantae no rosto claro, de feições miúdas.
– Seu mau! então é preciso que a gente o venha ver aqui?!
– Oh, minha senhora…
– Não se desculpe, nem me agradeça a visita.
Daí rompeu a falar, queixando-se de não ter o marido um minuto de descanso que lhe permitisse tratar dos seus negócios particulares, vendo-se ela na contingência de intervir, como fazia agora, a contragosto… Ia consultar o advogado e o amigo…
Argemiro agradeceu.
Enquanto a Pedrosa remexia na sua bolsinha de camurça, procurando um documento qualquer, o advogado olhou para a Sinhá, que não desviava o olhar de cima dele, numa expressão perturbadora, de mulher amorosa.
“Diabo!” – pensou ele consigo.
A consulta representava um pretexto. O negócio dispensaria a intervenção do advogado; todavia, a Pedrosa parecia não se importar de passar por estúpida; repetia as perguntas com uma dificuldade de compreeensão que dava tempo à filha de espichar a alma pelos olhos afora.
Mas o coração do viúvo parecia fechado a sete chaves e duro como uma pedra. Sinhá levantou- se, deu um giro pelo escritório, riu, falou, interrompeu a mãe e sentou-se depois mais perto de Argemiro, deixando-lhe cair de encontro a um joelho, por descuido, a sua linda sombrinha de seda e rendas brancas.
Como o assunto da consulta já não desse de si, a Pedrosa embarafustou por outras portas: as últimas récitas do Lírico, o jantar do presidente, o casamento do Ângelo Barros… aquele Ângelo que dizia ter feito também o juramento de ficar solteirão!
E, a propósito, a Pedrosa perguntou ao Argemiro quando teria de assistir ao seu…
– Eu já me casei, minha senhora…
– Sabemos; mas ser viúvo é como ser solteiro…
– Estou velho…
– Pois sim, a verdade é que eu conheço mais de uma moça bonita que se daria por feliz se o senhor a escolhesse… Olhe, na festa da apresentação de Sinhá, houve uma que ficou enfeitiçada pelo senhor.
Mãe e filha trocaram um olhar e riram alto. Depois, a Pedrosa continuou:
– É raro o homem que enviuva que se não torne a casar; o que é a melhor prova a favor das mulheres… Ora, o seu coração por que há de ser mais insensível que os dos outros? Um segundo casamento é ainda uma homenagem ao primeiro… Só procuramos repetir os atos que nos trazem felicidade…
– Será assim, mas o meu coração é pequeno para as saudades que tenho. Está todo ocupado pela minha morta…
Sinhá levou o lenço ao rosto e uma nuvem de Bouton d’or adejou pela feia sala do escritório.
Argemiro percebeu o movimento e deliciou-se com o aroma. Que significaria aquele gesto? Colheria o lenço uma lágrima ou disfarçaria um sorriso? Seria ele realmente amado por aquela criança, ou simplesmente preferido por aquelas mulheres como um marido de posição? Deveria ter pena, ou deveria ter nojo?
Ah! a pobre Sinhá talvez não tivesse culpa; quem era odiosa era a mãe, que assim o vinha provocar no lugar do seu trabalho arrastando pelos degraus carunchosos daquela casa de homens, a sua filha solteira, apenas saída do colégio! Mas a verdade era que o olhar da pequena perturbava-o, mais pela sua expressão, que pela sua fixidez. Obedeceria ela à sugestão da mãe, ou agiria a mãe em obediência a uma súplica da flha? Argemiro, apesar de lisonjeado na sua vaidade de homem, começou a desejar a saída das duas senhoras; mas a Pedrosa não parecia apressada e entrou pela seara da política, como entrara pela do amor.

Acertou no ponto de fascinação. Ela estava bem informada; Argemiro abriu ouvidos curiosos e dobrou-se na cadeira para escutá-la de mais perto. Ela era indiscreta, por ser com ele… pedia segredo de algumas afirmações, mostrando-se de vez em quando em oposição a atos do marido…
– Pedrosa morre por servi-lo em qualquer coisa… veja se inventa um pedido, para contentá-lo…
– concluiu ela, levantando-se com um arzinho malicioso nos olhos espertos.
Sinhá imitou-a, quebrada de languidez, como desanimada…
Argemiro observou-a de face; ela baixou os olhos, corando. Estava galante.
– Recebemos às sextas-feiras e Sinhá tem umas amigas novas que desejam conhecê-lo… o senhor anda muito arredio, mas nem só de saudades vive o homem… é preciso distrair-se e ser amigo dos seus amigos. Até sexta-feira?
– Até sexta-feira.
Saíram, e ainda por alguns minutos vagou na atmosfera o aroma delas. Argemiro pôs-se a remexer nos seus papéis, pensando:
“E haver quem se case assim, pescado, pescado como um peixe! Não seria mais digno que a Pedrosa viesse a mim e dissesse: minha filha ama-o desde a primeira vez que o viu; o senhor convém-me para genro; quer casar com ela?”
Ele mesmo se riu da idéia. Essa inocência de costumes só passaria pela cabeça de um doido; e de mais pô-lo-ia em embaraços. Que responderia ele à coitadinha?
Daí, talvez que tudo fosse veleidade sua. Os seus cabelos começavam a estriar-se de branco e Sinhá deveria ter ideais moços… Fora com certeza ilusão… Não lhe faltariam a ela, bonitinha e moça, bons partidos. Todavia…
Apoderou-se dele uma doce tristeza. Não poderia amar nunca mais! Nunca mais? Fora tamanho o encanto da sua Maria, que nenhuma outra mulher tivesse jamais o poder de o emocionar?
Nenhuma! Ela perdurava no seu espírito como o conjunto de todas as perfeições. A sua figura esguia e branca, que a cabeleira aureolava de ouro pálido, plantara-se no seu coração como uma sentinela pronta a repelir a invasão de um sentimento amoroso, por mais leve e sutil que ele fosse.

O contínuo voltou, anunciando novo constituinte.
Nas suas tocas os ratos faziam provisão de assuntos para os comentários da noite, nos livres passeios das salas e corredores… e o novo consultor fornecer-lhe-ia matéria para irônicas conclusões: era um velho que procurava salvaguardar os direitos da sua casa de jogo encapado em disfarces, com que espoliava incautos e viciosos. Argemiro indicou um colega mais hábil no assunto. O outro saiu, ele pôs-se a ler, à espera do Caldas para um negócio de valor.
Razão tinham aquelas paredes para parecerem desgostosas e estarem enxovalhadas.

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