CAPÍTULO XIII

Um grande clássico da literatura brasileira.

AUTORA: Júlia Lopes de Almeida

ANO: 1908

A noite estava escura. Alice levantou a gola do casaco e, puxando o véuzinho até a queixo, desatou a andar em direção ao largo do Machado, sem paciência de esperar o bonde à porta de casa.
Atrás dela, à curta distância, Feliciano não lhe tirava os olhos de cima, cosendo às paredes o seu corpo esguio. A sombra, protetora de segredos, confundia-se com a cor do seu rosto, esvaindo- lhe a imagem. Os tacões da moça batiam na calçada em pancadinhas miúdas e sonoras; os dele dir- se-iam forrados de veludo.

A espionagem tem asas de morcego, teme a luz, mas espalma-se na treva sem rumor nem receio. Seu elemento é o mistério. O desejo do mal é silencioso. Oh, se ele pudesse estender as unhas afiadas e fazer sangrar na escuridão a carne branca daquela mulher!
Não fora ela quem o desprestigiara diante dos outros que ele dominara antigamente como senhor? Todas as suas fraquezas, os seus crimezinhos de infidelidade não tinham sido farejados e descobertos por essa criatura imperativa e doce a um tempo? Nem uma palavra lhe saíra dos lábios, mas a verdade salta pelos olhos quando a não deixam sair pela boca.
Ela sabia tudo. Tratava-o como um inferior, uma máquina de serviço, sempre necessitada de direção. Não fora para isso que ele aprendera a ler na mesma cartilha da sua antiga iaiá!
Revoltado contra a natureza que o fizera negro, odiava o branco com o ódio da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. Um ente misericordioso não deveria ter feito de dois homens iguais dois seres dessemelhantes!
Ah, se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo lento, ou a afiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com alegria. Mas a abominação era irremediável. O interminável cilício duraria até que, no fundo da cova, o verme pusesse a nu a sua ossada branca…
Branca! Era a mulher branca que ele preferia, desprezando com asco as da sua raça.
A superioridade daquela que ia toc-toc na sua frente exasperava-o. O seu humor inalterável, os seus hábitos de asseio e de ordem não lhe tinham dado ensejo para a intriguinha fácil e perturbadora. Chegara o dia de castigar a afronta daquela branca intrometida, que ele odiava, e ardia por esmagar com a divulgação de algum segredo que a comprometesse. Desprezava o ardil pela verdade; mas, se esta lhe escapasse, então recorria a tudo, até ao feitiço de algum velho parceiro africano.
Mas desse recurso extremo só lançaria mão quando não pudesse contar com os da sua inteligência e malignidade.
Tinha ainda na memória uma sentença materna: “quem faz feitiço morre de feitiço”, e essa idéia afligia-o. A mãe era filha de mina. Devia saber… aquela branca pobre e presunçosa, que era mais do que ele na ordem das coisas, para o tratar assim por cima do ombro, com um arzinho supe- rior de patroa fidalga?
– Ela há de me pagar!
O que ele queria agora era saber bem da sua vida, penetrar no mistério daquela existência flutuante, sem raízes conhecidas; assenhorear-se de um segredo que a tornasse escrava da sua vontade poderosa.
Como aos de Adolfo Caldas, ela também representava aos seus olhos o encardido papel de especuladora.

Não era outra coisa; mas a intrusa teria o seu castigo, zurzido com mão de ferro, na hora marcada pela sua justiça.
O arrependimento entraria, então, no coração de Argemiro.
O bonde tardava e Alice não diminuía o ritmo dos passos. Antes assim; ele gostava de ir andando a pé, atrás daquela figurinha nervosa e fugidia.
Quem tanto se apressa, corre para a felicidade, que para o aborrecimento o passo é tardo.
Pensava o negro: “Ela vai para alguma entrevista de amor…”
Isso contrariava-o… e crescia-lhe com essa idéia a raiva pela usurpadora dos seus regalados descansos e da sua autoridade de chefe!
Ela matara o seu prestígio. Viesse quem viesse depois dela, encontraria lançada na casa a semente da desconfiança. Fora um dia o Feliciano, que lia jornais nas cadeiras do amo, com deliciosos charutos entalados entre os beiços.
Um bonde! E o bonde parou a um gesto de Alice, que subiu para um dos bancos da frente, aconchegando com um arrepio o casaco cor de mel ao corpo friorento.
Feliciano, em pé na plataforma, não a perdia de vista.
No largo do Machado ela desceu e, passando pela frente da igreja, tomou a direção da rua Bento Lisboa.
O negro, a pequena distância, ia atrás dela, dando graças ao vento que fazia ulular o arvoredo da praça, abafando outros rumores. Na rua Bento Lisboa, Alice acelerou a marcha. Parecia levada por um grande desejo. Feliciano espiava-a aflito, numa ansiedade!
A sua admiração era não ver aparecer um homem, a quem ela desse o braço, que a comprometesse e o ajudasse na intriga… De resto, ele não queria crer, queria denunciar!
De repente estacou; a moça sumira-se na portinha negra de uma casa antiga, meio arruinada.
Feliciano passou, tornou a voltar, sondou com olhar atrevido o corredor escuro, procurou ver se estaria alguém a quem pudesse fazer qualquer pergunta na vizinhança, encostou-se a um umbral fronteiro e esperou, indignado, contra aquelas paredes, que um murro de homem deitaria abaixo e que lhe escondiam o mistério desejado!
O vento e o pó obrigavam os moradores do lugar à reclusão. As janelas fechadas estristeciam a rua ordinariamente animada. Que se passaria lá dentro?
Feliciano esteve uma ou duas horas à espera, como um vigia cuidadoso, firme no seu posto.
Nem uma réstia, um tênue fio de luz vinha cortar a treva daquela fachada muda!
O negro tinha ímpetos de ir encostar o ouvido às janelas ou penetrar no corredor, cansado de esperar, numa impaciência que o adoecia.
Eram quase dez horas quando ouviu rumor de vozes e reconheceu a de Alice. Depois a moça reapareceu, puxando a porta sobre si.
A casa, impenetrável, guardava o seu segredo. Alice deslizava na sombra com o mesmo passo apressado. Dir-se-ia que igual desejo a levava ao ponto de onde partira três horas antes!
Desnorteado, Feliciano hesitava se deveria acompanhar Alice, cujo destino conhecia, se ficar mais alguns instantes esperando alguém que porventura saísse daquela casa. Alice nunca entrava nas suas quartas-feiras depois das dez horas; logo, ela marchava para o Cosme Velho. Interessava-o agora quem ficava ali. Começaram a cair grossos pingos de chuva e a escuridão era apenas dissimulada pelos lampiões de gás. Já sem receio de ser surpreendido, Feliciano verificou o número da porta por onde Alice saíra, mas só se afastou quando ouviu que a ferrolhavam de dentro.
“Quem estava, fica… logo, vou-me embora”. E ele voltou, intrigado, aborrecido, com maior ódio ainda por aquela mulher que se lhe escapava de entre os dedos fracos quando julgava prendê-la para toda a vida!

Enfim, já sabia alguma coisa: aprendera o caminho da toca, onde ela vinha furtivamente todas as semanas, em horas e dias determinados…
“Quem se fia em mulheres está bem servido!…” – pensava consigo o negro, desandando no seu caminho. Esta ainda é pior do que as outras, porque é fingida. Fingida como Judas!
– Ela há de me pagar…
Alice deu volta à casa do jardim e entrou por uma porta do fundo, evitando um encontro provável com Argemiro, que falava alto no escritório, junto à saleta da frente.
Cansada, sentou-se um momento na sala de jantar, antes de subir para o seu quarto, vigiando a porta do escritório, pronta a fugir num relance, caso ele aparecesse. Com as mãos abandonadas nos joelhos, sorria com amargura às palavras de Argemiro, que lhe chegavam nitidamente aos ouvidos. Ele arengava contra as mulheres. Os outros davam-lhe razão, citavam exemplos destacados de escândalos, riam-se alto, declarando o casamento uma instituição prejudicada.
A uma frase atrevida de Argemiro, respondeu Adolfo Caldas maliciosamente:
– Enquanto pelo anúncio do Jornal acudirem governantas moças para as casas de viúvos sós…
Mas é que nem todos são viúvos, meu caro!
Teles riu alto; a voz de Assunção disse qualquer coisa que a palestra dos outros sufocou.
Poderiam gritar. Alice tapara os ouvidos com os dedos e subiu correndo para o seu quarto, onde se fechou por dentro.
Quem falava agora na sala era o padre Assunção:
– Ainda há mulheres tão puras como as mais puras de todos os tempos. Tenho ouvido muitas Ruths no confessionário, e conhecido almas adoráveis de inocência e de bondade. Vocês conhecem- nas pelas exterioridades, eu pelos sacrifícios, – que são ordinariamente as sacrificadas que nos vêm pedir conselho e consolação. Tenho encontrado em meu caminho sublimes abnegações, sempre por parte das mulheres…
– Por que os homens não se confessam!…
– Confessam-se alguns, mas não dizem tudo, ou, quando o dizem, fazem tremer! Tenho muito respeito pela mulher e sobretudo pela mulher pobre, porque nunca a pobreza deixou de ser afrontada, nem a mulher deprimida…
– Meu evangélico Assunção, parece-me que a tua psicologia está errada! Nós sacrificamo-nos muito mais…
– Nós sacrificamo-nos pelas idéias; elas sacrificam-se por nós, que somos menos compensadores e mais ingratos…
– Bonitas coisas você deve ter ouvido, padre! A mim o que me espanta e revolta é que ainda haja pais e maridos que consintam nessa abominação do confessionário. A religião não poderia ter inventado coisa mais vil nem mais repugnante. Vamo-nos embora.
– Vamo-nos embora, que a noite está negra que nem uma alma pecadora – disse Teles, ao mesmo tempo que Adolfo continuava:
– A minha confissão é que tu não ouves, padre! que me mandarias pelo telégrafo para o inferno. Basta que eu te confesse isto: amanhã darei um salto à tua biblioteca. Preciso de Rodrigues Lobo… Daquele – Pastor peregrino.
Assunção, procurando o chapéu, exclamou:

“Cabelos que na cor formosa e pura Estais ao mesmo sol fazendo inveja, Que confiança em vós será segura…”

Mas o Teles interrompeu:
– Olhem que o Argemiro está com sono e eu morto por me ver na pensão!… Desceram, e, já na rua, o padre relembrou ainda uma frase do clássico:
– Deixai-me enganosas alegrias, que eu não busco na ventura senão o que a meu desterro sem esperança e à minha vida desesperada convém.
– Sinto cheiro a bafio quando ouço clássicos – comentou o deputado.
Adolfo acendia um charuto. Assunção adiantou-se para mandar parar o bonde.

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