CAPÍTULO XIX
Um clássico de: Júlia Lopes de Almeida
1908
CLASSIFICAÇÃO:
– Assunção!
– Argemiro…
– Fizeste bem em vir esperar-me; estou doido por conversar contigo; disseram-te lá em casa que eu chegaria hoje?
– Naturalmente… eu não poderia adivinhar!… olha a tua mala… Pareces-me magro…
– Um pouco…
– Boa viagem?
– Regular… Como está a minha gente? E tua mãe?
– Dá a mala ao carregador… Conversaremos em caminho.
– Tens razão; e eu estou com pressa de chegar a casa. Decididamente, abomino os hotéis. Que desconforto! que aborrecimento! que noite! Ah! Assunção, nunca o meu cantinho me pareceu tão delicioso como nesta ausência. Isto deve ser velhice… os meus ossos não se afazem a outros colchões, nem a minha cabeça a almofadas que não sejam as costumadas. Hás de acreditar que sofri de insônias em S. Paulo? Depois eu não tinha notícias! Glória escreveu-me duas cartinhas; tu nenhuma… Nenhuma! inacreditável o teu descuido! Meu sogro escreveu-me também, mas só falava na mulher e na neta. É verdade, o Caldas também me escreveu… Referia-se a ti…
– Tiveste então cartas de todos!…
Saíam da Central. Argemiro acenou para um carro.
– De todos… mas incompletas… Só tu me poderias dizer tudo; és íntimo de minha casa, mais íntimo do que eu! Compreendes que eu fugi!
– Por que, homem?!
– Nem sei porque… medo do barulho, da intriga… de não poder conter o meu mau humor.
Estava enervado, aborrecido… Depois arrependi-me. Não tinha que fazer; bocejava pelas ruas… o hotel indispunha-me comigo mesmo. Estou como o caracol, – não posso sair da minha casa sem perder a vida… Acredita: até do cheiro da minha casa eu tinha saudades! Parece-me incrível que um sujeito de vida bem organizada goste de viajar. Tu nunca viajaste. É uma maçada! Mas que diabo, tu não me dizes nada!
– Não me dás tempo…
– Tens razão; mas estou cheio até a raiz dos cabelos. Mal conversei durante a viagem; estava com a língua entorpecida. Este cocheiro é um lorpa… não toca os animais! De que te ris?! estou morto por beijar minha filha! Muito crescida? Tens ido lá todos os dias? Tens estado sempre com todos?…
– Todos os dias, não… mas quando vou estou com todos…
– Minha sogra ainda se demorará cá por baixo?… Isso é o que me interessa mais saber.
– Ignoro… Eu tenho freqüentado menos a tua casa, receando que os barões achassem importuna a minha assiduidade…
– Estás doido! Sabes que te estimam muito! Bem… e… não houve por lá nenhuma questão…
– Tem paciência, escuta.
– Mau!
– Ontem à noite recebi uma carta de teu sogro, pedindo-me para vir esperar-te hoje à Central e prevenir-te de que a d. Alice só espera por ti para deixar a casa.
Argemiro não respondeu logo, e, arregalando os olhos, voltou-se para o amigo, muito desapontado.
– A notícia não é amável e acredita, Argemiro, que a dou com pena. Mas já agora deixa-me dizer-te que mais uma vez andaste impensadamente… Não deverias ter saído de casa nesta ocasião, tanto mais que já temias qualquer incidente desagradável…
– Não consinto! Ah, eu é que não consinto; e o dono da casa sou eu! Por que sai a d. Alice? Não sabes?… Eu imagino: picuinhas… alfinetadas… tanto a aborreceram, tanto a azedaram, tanto a mordiscaram, que ela não pôde mais! Era o que eu temia, lá longe! Parece que estava adivinhando.
Um inferno. Ora o que me esperava! E agora? Dize-me: e agora?!
– Arranja-se outra…
– Estás tolo! Outra! A facilidade com que se dizem asneiras… Nem tu pensas no que estás dizendo. Conheço-te bem; sei qual é a tua opinião a respeito dela… Eu é que fui um asno, um idiota; não devia ter consentido na vinda de minha sogra para casa. Foi ela que escangalhou a minha felicidade com as suas bobagens de velha tonta. Disseste bem, fiz mal em fugir. Fugi por pusilanimidade… pelo eterno prazer do sossego e do bem-estar. Fresco bem-estar, o dos hotéis! E agora, hein?! arranja-se outra! ora, que resposta! Se há outra como aquela!
– Tu nem a conheces…
– Nunca a vi, mas conheço-a, adivinhei-a; abstraí da personalidade. Ela é o meu conforto; a minha segurança, a minha felicidade. Agora explica-me tudo: que lhe fizeram?
– Não sei, filho; mas creio que nada. Teu sogro, temendo a tua decepção, como se se tratasse de uma terrível catástrofe, escreveu-me ontem o que eu já te disse. A minha surpresa foi quase do tamanho da tua. Somente, eu espero conciliar as coias.
– Ah, eu não… Acabou-se. Volto à ignomínia do Feliciano. Não. O Feliciano roda hoje mesmo a pontapés. Cachorro… Outra… outra… onde encontrá-la? Pensas que há muitas mulheres assim, por aí, à espera das minhas ordens? Tu estás bem convencido do contrário… Eu sei que a consideras muito… Já a tens defendido, à minha vista, quando a acusam. Por mim, declaro-te que acabei de conhecê-la nesta ausência… Por acaso, no dia da partida, juntei alguns livros avulsos pelas mesas e meti-os na mala. Em uma das minhas noites de insônia, no hotel, abri um desses livros, e verifiquei com espanto que ele pertencia a d. Alice. Lá estava o seu nome, por sinal com uma letra bem bonita… Era um livro inglês de poesias. A minha governanta lê versos; e de mais a mais em inglês!
Folheei o livro com alguma curiosidade… Havia versos sublinhados, notas feitas à margem… Sabes que do meu exame de inglês não me ficou patavina… o livro não me poderia divertir; entretanto, não sei porque, era o único que me interessava! Comprei um dicionário e pude mais ou menos penetrar um pouco no mistério… Compreendes que isso não poderia deixar de impressionar-me…
– Ela é inteligente…
– Muito. Para ter a certeza disso eu não precisava das poesias inglesas; bastava-me a mudança radical de minha filha. Negarás isso?!
– Não…
– Lembras-te? Glória era terrível, intratável, brutinha! E agora? Está dócil, risonha, delicada. A avó perdia-a com os seus mimos e a d. Alice salvou-a. Tens reparado na boa pronúncia francesa de minha filha? Na véspera da minha partida ela leu-me uns exercícios do Método. Fiquei espantado. Um prodígio!… Logo, esta mulher, que ensina francês, lê versos ingleses, faz aquarelas razoáveis e interpreta ao piano trechos clássicos, como já eu ouvi, sem que ela o percebesse… é uma rapariga de fina educação e que não me resigno a perder por caprichos de terceiros! As minhas flores!
Porventura tive eu nunca, nem mesmo no tempo de Maria, rosas como tenho agora?! É ou não é verdade que o meu jardim é um dos mais belos do bairro?!
– É…
– E quem o transformou? Ela. Ainda agora, lendo o livro do Shelley, sentindo-lhe o perfume peculiar e que em poucos dias ela espalhou por toda a minha casa, capacitei-me de que a alma dessa mulher é rara e voltada para tudo que torna a vida agradável. Ainda não lhe descobri defeitos…
– Há de tê-los.
– É humana… e portanto, queres dizer que se fosse perfeita seria defeituosa… Talvez seja feia…
Sabia-me agora bem o imaginá-la.
– Ocupavas-te nisso?
– Às vezes; é natural: quando eu pegava no livro e sobretudo quando sentia o seu aroma…
Qualquer outro faria o mesmo… não te parece?
– Talvez…
– Sou-lhe muito grato. Asseguro-te que nunca me vi tão lisonjeado, tão contente da vida, como agora nestes últimos tempos. Era uma atmosfera amorosa a da minha casa.
– Não há bem que sempre dure…
– Ora que notícia! E eu que vinha morto por senti-la! Assunção sorriu.
– De que te ris?!
– Da tua expressão.
– É sincera.
– Sei. Mas não desesperes… Realmente, a tua governanta governou demais; mas estou de acordo em que deves procurar guardá-la junto de tua filha; e talvez isso não seja tão difícil como te parece!
– É impossível.
– Tentemos…
– Como se teria dado o rompimento?
– Não sei. A carta de teu sogro é lacônica e sucinta. Deveria mostrar-ta, mas esqueci-a em casa.
– Naturalmente, minha sogra espicaçou-a de tal forma, que a pobre perdeu a paciência e despediu-se. Guerras de mulher. Conheces nada mais indigno? Picadas de alfinetes embebidos em veneno… Eu sei! Estou agora arrependido de ter vindo de carro… O bonde daria mais tempo e conversaríamos melhor. Foi uma cacetada! Conheces nada mais importuno que a velhice? Até cheira mal! E que vai ser de Glória?… Pensará a avó que lhe entrego a neta? pois sim! É minha, de casa não me torna a sair. Afinal, a prejudicada será ela… coitada! Mas com que direito cometeram meus sogros semelhante vilania? Tu não explicas nada!
– Filho, já disse o que tinha a dizer-te! Daqui a pouco estaremos nas Laranjeiras; será, então, tempo de averiguar o caso. Lembro-te que a baronesa anda adoentada… que é muito sensível, e que toda a sua antipatia por d. Alice se funda no ciúme…
– Tolices!
– Tolices ou não. Supõe que traístes o que prometeste a Maria…
– E que traísse! não era razão!…
– São modos de pensar… Tua sogra arvorou-se em sentinela do teu coração, já o disseste. Ela não quer lá dentro senão a imagem da filha.
– E não existe outra. Está farta de saber que eu não conheço esta mulher. Já enfada dizer e ouvir isto: nunca a vi! Nunca!
– Mas gostas de senti-la… há pouco o disseste. Avisei-te do perigo, procurei afastar-te… conheço a tua imaginação; mas fui tão fraco que não consegui o que deveria ter conseguido… Não faz mal.
– Em vez de imaginação dize: egoísmo. Aterra-me a idéia de voltar à desordem antiga… aos roubos do negro… à negligência da casa, ao desperdício da despensa. Era um inferno. É só isso que me incomoda… mais o abandono de minha filha… Não terei remédio senão pô-la num colégio… Eu não tenho tempo de me ocupar de tantas coisas e já tenho abusado muito da tua amizade. Estou atarantado… Vê se me salvas! Só tu!
– Antes de mais nada, logo que chegarmos sobe ao teu quarto, com o pretexto do descanso, banho e mudança de roupa. Entretanto eu irei falar a d. Alice. Ela me dirá a verdade… Prepararei o terreno.
– Contas com a sua sinceridade?
– Absolutamente. É uma mulher simples.
– Mais uma virtude… E depois? É natural que meus sogros desejem falar primeiro… Enfim, o que for soará! Péssima recepção!… Maldita a hora em que saí de casa!
– Estás trágico! Mal imaginavas que um anúncio do Jornal do Comércio te trouxesse tantas complicações! O que nós rimos da tua lembrança, naquela noite em que nos declaraste a tua resolução. Tudo podíamos prever, menos isto!
– Ainda vocês negam a força oculta que obriga o indivíduo a executar, às vezes, as mais extravagantes resoluções! Quando eu me lembro do ridículo que vocês me atiraram à cara por causa daquele anúncio! Eu mesmo o escrevi sem esperança, numa hora de raiva contra o Feliciano. Tudo se me afigurava melhor. Quem poderia crer, porém, que fosse tão bom? Parece-me agora que a minha mão, ao escrever aquele pedido de governanta, num anúncio, puxou o fio do destino desta mulher… Lembras-te? Não apareceu mais ninguém! Dar-se-á o caso de só ela o ter lido?
– Não. Eu também o li… o Caldas… tua sogra…
– Já me tardavam as caçoadas. Não tens o direito de rir de um aflito. Estou até com medo de parecer grosseiro e tratar mal os velhos!
– Eles nem terão culpa… sim, é possível que a d. Alice já estivesse resolvida a isto mesmo.
Quem nos dirá? Não fez um pacto para toda a vida…
Argemiro calou-se, olhando atônito para o amigo. Quem sabe? E depois:
– É pena que não me possas dar informações completas… Ela… nunca te fez confidências… não terá intenções?…
– De quê?
– Casar, por exemplo! Que diabo!
– Deve ter. É moça… Não sei. Minha mãe gostou dela…
– Ah! D. Sofia viu-a?
– Levou a Glória a visitar-nos uma tarde, e enquanto eu mostrava as flores e a vista à tua filha, ela entreteve-se com minha mãe.
– E d. Sofia então disse-te?…
– Que aquela moça faria a felicidade do homem com quem se casasse. Sabes a mania casamenteira de minha mãe. Ela julga, como foi feliz, que a única felicidade perfeita na terra é a da família… Quantas vezes a surpreendo com os olhos nublados sobre a minha batina de celibatário! Então, para vê-la sorrir sabes o que eu faço? Carrego ao colo os seus petizes, que estão lindos e nédios como leitõezinhos. E a verdade é que já os amo também, a ambos. O Jorge adormece à noite nos meus braços; enquanto minha mãe cose, embalo-o na cadeira de balanço, até vê-lo pegadinho no sono. Ao princípio eu fazia isso para dar satisfação à minha mãe; mas hoje já o faço por gosto próprio. É bonito o sono de uma criança… E o brutinho não adormece sem que eu lhe cante a
”Senhora Sant’Ana Passou por aqui…”
Minha mãe conseguiu atar-me a outros seres de mais longo futuro… não morrerá nela o meu interesse pela vida! Chegamos à tua porta. Lá está tua filha no jardim.
Depois de beijar Glória e apertar a mão fina e mole do sogro, que desceu ao vestíbulo a recebê- lo, Argemiro subiu ao seu quarto. A baronesa descansava ainda: não a vira nem de passagem.
Argemiro subiu a escada do quarto, com as narinas dilatadas, farejando o aroma sutil e inconfundível da sua casa. Na saleta, um ramo de La France e de resedá representou-lhe ao espírito a figura desconhecida de Alice, que ele sentia, enfim, naquela ordem e naquele cheiro que lhe alegravam o lar.
O Feliciano fora ao carro buscar a mala, e não merecera resposta ao cumprimento que fizera ao patrão. “O homem vem zangado…” – pensou ele consigo. “Que dirá quando souber!”
Pela primeira vez, Argemiro procurou, através das venezianas do seu quarto, ver se descortinava o vulto ao menos da sua governanta. Chegava-lhe a curiosidade pela sua pessoa. Um desejo de matar saudades de uma desconhecida! Voltou para o interior do quarto. Em cima da sua mesinha estava uma carta fechada, sobrescrita por mulher.
“Quem sabe se será a sua despedida?” – pensou; e abriu-a com presteza. Leu: ”Meu amigo, fui pedida em casamento e desejo apresentar-lhe o meu noivo. Estou radiante! Venha. Sinhá.” Sinhá… o pavilhão japonês… Fechava-se o pano sobre essa fantasia, cujo interesse se deixara todo para o fim. Estimava a felicidade da moça. Levar-lhe-ia uma prenda que o lembrasse no seu lar, eternamente. Era feliz, essa. Começava. E ele? Estava no fim. Sem destino, aborrecido, cansado… e ansioso!