CAPÍTULOS 03 e 04
ROMANCE DE: Aluísio Azevedo
ANO: 1880
CLASSIFICAÇÃO:
03
Fatal metamorfose!
Maffei e a filha rolavam pelos despenhadeiros da sociedade; dera- lhes o primeiro empurrão a cobiça, a posse o segundo, depois o orgulho e finalmente o vício. No cair vertiginoso tentavam, baldadas vezes, agarrar-se às asperezas do precipício e não conseguiam mais do que sujar as mãos, porque a lama faz escorregar e suja.
Afigurava-se-lhes entretanto estarem a voar para cima; têm destes efeitos singulares as grandes quedas. Às vezes supomos subir quando evidentemente caímos. Viam tudo luzir em torno deles, sem se lembrarem que a lama também tem o seu brilho, em lhe batendo a luz… do ouro.
E caíam! Caíam sempre, porque o mal é como a lua – cresce ou diminui, nunca estaciona.
Uma noite, seriam duas horas da madrugada, os salões da casa da Rua de Toledo reverberavam ao clarão aristocrático das mangas multicores de cristal.
Era noite de baile.
O baile tem um quê de morcego – só aparece à noite e rouba as cores às raparigas.
Havia grande folgança na casa, porque muito se ria e dançava; a festa chegara às fases do frenesi e da loucura.
Em uma das salas porém, lívido, monstruoso e feroz, encerrado ali como uma fera na jaula, o jogo devorava, silenciosamente, terras, palácios, jóias, dinheiro e reputação; era um tragar de jibóia – engolia sem mastigar.
O silêncio indicava que o monstro fazia a digestão surda e pesada, porém fortíssima – desgasta o ouro e o diamante com a imperturbabilidade e pachorra de um cônego velho e gastrônomo, que rumina, com apetite e método, o fruto da caridade do povo.
A consciência sentia vertigens de olhar por muito tempo para aquele grupo, espécie de autômato, movido pela cobiça e governado pela força abstrata do vício.
No meio da mesa, brilhava como um centro planetário, o monte de moedas de ouro, em torno do qual toda a força e atenção dos circunstantes gravitavam impacientes e desordenadas.
Era o centro de gravidade das almas daqueles miseráveis; para ele convergiam todos aqueles sentidos cariados e todos aqueles corações sujos
– pátria, família, aspirações, glória, tudo, tudo se resumia no punhado de moedas.
Não se ouvia uma palavra.
Como estátuas movediças atiravam à boca escancarada da fera os seus bens, os do filho, o futuro da própria família e o da alheia.
E a fera, como uma vala de cemitério, ia sorvendo em silêncio tudo o que lhe lançavam, enquanto todos jaziam a meditar, que também a gente medita para fazer o mal.
Todavia, toda e qualquer consciência tem horror ao jogo; a ninguém incomoda tanto o tapete verde como ao próprio jogador – enquanto lança à sorte o que possui, cala aos pés a pobre consciência, que, ao lado das escarradeiras, dorme ébria e envergonhada debaixo da mesa.
O salão principal do baile oferecia um espetáculo inteiramente oposto ao que acabamos de esboçar.
Não se ouvia aqui o ressonar pesado do jogo, sentia-se a febre vertiginosa da dança; aqui era tudo delírio e loucura. A atmosfera, morna, pesada, abafadiça e de um branco opaco, enervava a cabeça e dilatava os sentidos.
A atmosfera de um baile daquela ordem, no seu apogeu, afeta singularmente a economia animal dos moços. O coração como que se derrete ao calor dos galanteios, dos perfumes, das luzes, dos vinhos, dos vapores estimulantes que exalam os corpos cansados das mulheres, e derrama-se por todo o corpo como um filtro diabólico e sensual, que percorre e excita os tecidos orgânicos, precipitando as suas competentes funções; o exercício da valsa dá ao coração formas extravagantes e ca- prichosas – fá-lo pular, estremecer e palpitar; e, conforme as impressões que recebe, enforma-se, dilata-se, encolhe e chega a tomar formas obscenas.
A gente mais facilmente ama nessas ocasiões, porque a atmosfera e o cansaço aceleram os fenômenos vitais. Em tais circunstâncias uma resistência é quase impossível – afinal o corpo descai e languesce volutuosamente; percorre todos os membros uma moleza gostosa e doentia; sentimos cócegas nos cantinhos da boca e no interior das ventas; o rosto afogueia-se; desfalece a energia; o hálito queima; os dedos criam uma sensibilidade igual à da língua; o vítreo dos olhos raia-se de sangue e faz- nos ver tudo por um prisma vermelho fantástico.
O ópio não produz efeitos tão deslumbrantes.
Quanto mais a gente dança, quanto mais se agitam os membros estafados, tanto mais se envenena o ar; as flores terminam a obra roubando o pouco oxigênio que resta na atmosfera. Resulta de tudo isto um ar viciadíssimo e tão gasto e condensado que se pode comer em vez de respirá-lo.
Quanto mais tempo dura o baile e com ele a aglomeração e o exercício, tanto maior e mais veemente é a necessidade de respirar, e então sorve-se com sofreguidão o ar e o pó já muito usados por todos.
Os pulmões aspiram e expelem sempre o mesmo ar e o mesmo pó.
O ar é como um pensamento e o pulmão é como um cérebro, acontece que o mesmo ar penetra, como uma idéia geral, todos os pulmões, e esse aí ou essa idéia única corre toda a sala, entra por todos, domina quem a recebe e acaba por formar, identificando toda a sociedade – um só pulmão e uma só cabeça, isto é, uma só vontade e um só querer.
Eis aí o que era um baile em casa de Maffei. Simplesmente uma reunião de moços de ambos os sexos, metidos numa sala bem fechada, onde dançavam, pulavam, cansavam e apodreciam, como muitas maçãs em um cesto, onde é bastante haver uma podre para contaminar e corromper as outras.
Esse contacto infernal era uma lógica conseqüência do ar viciado e da simpatia.
E tanto é assim que em certas ocasiões não queremos tomar parte num divertimento que nos parece mau, e, uma vez entrados, empenhamo- nos nele tanto como os que lá estavam: veja-se de parte um baile e este se nos afigurará uma reunião de doidos. Num combate se verifica a mesma coisa – travada a luta são todos bravos; nos cárceres são todos maus; nos hospitais são todos doentes; em um naufrágio são todos religiosos e assim por diante.
O ar sempre transmite a quem o respira o caráter do lugar em que se acha, como no leite a ama transmite à criança que amamenta, todos os seus males físicos e morais.
Para fazer um homem mau é bastante obrigá-lo a respirar com os
maus.
E há quatro anos os pulmões da bela Rosalina enchiam-se com o
mesmíssimo ar que uma roda má e corruta, até às pontinhas do cabelo, sorvia e expelia por todos os poros.
04
Mas que roda era essa tão esquisita?
Donde vinha semelhante gente, e para onde se destinava?
– Vinha do nada e caminhava para o nada, pouco mais ou menos…
– De quem ou de que se compunha?
– De restos.
– Expliquemo-nos.
Em todas as grandes capitais há desse gênero de boêmios aristocráticos, que Dumas Filho, referindo-se aos de Paris, intitula Demi- Monde, espécie de ilha flutuante, que bóia à flor da sociedade universal.
Em Nápoles essa sociedade de ouropel florescia em 1846, com escandalosa aceitação, e, sustentando-se por necessidade, ia caminhando, podemos dizer, com regularidade, substituindo a nobreza pelo dinheiro e o dinheiro pela nobreza, e, na falta de algum destes agentes, socorrendo-se à formosura e à mocidade, na ausência dos quais ainda lançava mão, como último recurso, do talento de savoir-vivre e da arte de se meter em toda parte e de saber tirar partido de tudo.
Essa singularíssima e perigosa prole principiou do seguinte modo:
– Um fidalgo arruinado, depois de atirar pela janela do desperdício o último vintém e, não podendo abdicar para sempre dos seus inveterados hábitos de opulência, procurou um burguês rico com o fim de, muito em segredo, nele se arrimar; o burguês, por outro lado, também precisava do auxílio da nobreza, para ter importância e subir; reunidos satisfaziam mutuamente o útil e o agradável. Fundiram-se.
Dessa combinação resultou – luz e movimento. O paralítico prestou olhos ao cego, e o cego prestou pernas ao paralítico. E assim puderam ver e andar.
Ora, tudo aquilo que vê e anda, pode ir para diante e é suscetível de progresso.
Foi o que sucedeu – prosseguiram.
Pelo caminho foram atraindo com a luz da sua idéia os companheiros que andavam desnorteados e erradios à procura de um rumo.
A luz transformou-se em farol – os náufragos sociais engrossaram o grupo.
As mulheres, que se desacreditavam na alta sociedade, vinham, repelidas pelos competentes maridos e pelas competentes famílias, refugiar- se nessa roda; os filhinhos, ou melhor, as causas inocentes desta debandada, chegavam juntamente com as mães repelidas e com elas se educavam no mesmo meio.
Estas malfadadas crianças cresciam e, quando, por fraqueza ou por falta de pundonor, não fugiam envergonhadas, formavam a parte moça da Sociedade Flutuante. As vagas dos maridos eram razoavelmente preenchidas pelos amantes e jamais os filhos conheciam os verdadeiros pais.
Era mais uma roda de enjeitados do que uma roda social.
Compunha-se especialmente de destroços e de vergonhas – ali o que não era um resto era um embrião – ou tinha já deixado de ser ou ainda não era; ninguém tinha um lugar definitivo, porque logo que chegasse a alcançá-lo desertava incontinenti.
Podia também aquilo ser considerado como um curso preparatório; habilitavam-se ali para poder galgar um lugar fora, e só na hipótese de nada encontrar exteriormente, recorriam à Sociedade Flutuante, como remédio extremo ou como último porto de salvação.
E em verdade é que, até certo ponto, achavam os fugitivos, na obscuridade dessa roda, abrigo seguro para as suas vergonhas e pesares. Esses eram os desesperançados.
Conclui-se que aquilo podia ser ou um túmulo, de qualquer modo seriam trevas, à semelhança do homem, cujos extremos são sempre sombras; podia ser um princípio ou um fim, porém nunca um meio, isto é, uma posição social.
Em público, todos odiavam essa sociedade; em particular muitos a procuravam e, ninguém, quer pública ou particularmente, queria por gosto ali ficar para sempre. Quem ali permanecia era por não obter absolutamente outro recurso.
Desse feitio pensava Maffei, e tinha para si que o casamento de Rosalina com um fidalgo arruinado abriria na nobreza uma brecha assaz larga para ele evadir-se também. – Um fidalgo quando empobrece, continuava o burguês a pensar, em geral cai e com o choque abre na sua classe uma fenda por onde se vai introduzindo a burguesia.
Frágil e desgraçada coisa é a nobreza que precisa de dinheiro para não rachar.
Era com essa fenda que contava o antigo pescador. E contava muito bem, porque os homens, ao contrário dos gases, quanto mais pesados mais sobem.
A Sociedade Flutuante avultava de dia para dia; ultimamente tornava-se até bastante conhecida e um tanto censurada, e, se bem que afetasse ótima aparência, a polícia tinha-a de olho.
Os seus mais perigosos detratores eram justamente os seus próprios adeptos – diziam mal uns dos outros e, a falta que este, com mil cuidados se esforçava por encobrir, aquele lha devassava pela surrelfa.
Iam contudo vivendo e aliás regularmente.
O maior desejo das raparigas que lá caíam era casar fora dessa roda ou com alguém que ali estivesse por mera curiosidade, como simples amador. Se o logravam, saíam sem sequer voltar para trás a cabeça desapareciam por uma vez, e faziam bem.
Quem mais gostava da Sociedade Flutuante eram os rapazes solteiros. – Os amores, como diz Dumas, são aí mais fáceis do que na alta sociedade e mais baratos do que na baixa.
Isto compreende-se com os amadores, com os que a freqüentavam por espírito de – curiosidade, espécie de sócios honorários, porque com os outros, isto é, para os sócios legítimos e efetivos, não era essa sociedade mais do que um recurso sofrível, em falta de outro melhor.
Estes eram os velhos ou parvos.
Se era um nobre que vinha arruinado e gasto da alta sociedade, chegava cansado e só queria que lhe dessem uma cadeira para descansar ou uma cama para morrer; e se o sujeito era nascido aí e se tivesse deixado ficar, provaria com isso que era simplesmente parvo e então só desejava que o deixassem viver na lama em que tinha nascido.
Finalmente, velho ou moço, nobre ou parvo, o certo é que para fazer parte da Sociedade Flutuante eram necessárias duas coisas principalmente: a primeira – não ter juízo; a segunda – não ter brios.
Agora que fica conhecida a roda de Maffei, lembro que há quatro anos vivia nela Rosalina.