Capítulo 08 até 10

AUTOR: Aluísio Azevedo

CLASSIFICAÇÃO:

8

Foi-se passando o tempo e o recém-chegado sem explicar a melhora da situação.
Também as mulheres não se animavam a interrogá-lo; compreendeu a boa gente que tinha melhorado de sorte, e a Madona por isso recebeu nessa noite uma grinalda nova toda perfumada.
Com efeito Maffei tinha enriquecido.
Em principio encontrou em Rezina a sorte adversa; porém, com energia e ambição soubera poupar e avultar um pecúlio, que, emprestado a juros e especulações mais altas, em pouco tempo se multiplicara. A economia rigorosa concluiu a obra, crescendo na razão direta do engrandecimento do capital.
Outros atribuíam a um princípio ilícito essa riqueza; aqui diziam que Maffei roubara; ali, que a fortuna o protegera, fazendo-lhe achar dinheiro nas escavações.
Sabemos que em Herculano não apareceu muito em dinheiro, porque a população tivera tempo de fugir, quando a cidade foi submergida; também sabemos que em Nápoles ninguém se queixava de Maffei como ladrão, mas o que era patente e real é que o pai de Rosalina voltava rico, mais ambicioso e necessariamente pior de coração.
Luzia-lhe agora com mais intensidade no olhar a cobiça vermelha e sinistra, como um farol no meio da tempestade.
E não havia porventura uma tempestade naquela cabeça? Sim! Porém toda interior.
Não se ouviam os trovões nem os vendavais, a revolução ia-lhe por dentro e só chegava à superfície da fisionomia desfeita em espuma biliosa nos cantos arqueados da boca e em sangue mau no vítreo dos olhos.
Isso era nos momentos de cólera.
À monotonia bondosa da casinha branca sucedeu a tristeza, espécie de pavor, que cerca o homem de má catadura.
Contra ele principiavam já a murmurar, na ilha, e, se até ali tinha tido poucos amigos, nenhum desses lhe restava agora. Em geral o malqueriam, davam-lhe a paternidade de coisas horríveis; crimes medonhos, maldades atrozes, tudo servia para explicar a sua imprevista fortuna.

Todavia, se bem que contrariado e só, ia ele vivendo, falava menos e com mais indelicadeza; durante o sono, balbuciava palavras singulares. Frenético e aborrecido, agitava-o sempre a mesma impaciência e o mesmo cogitar.
Quais seriam as suas intenções?…
Não o sabiam as mulheres, nem se animavam a perguntar-lho.
Com todas estas coisas ia avultando a tristeza na casinha branca. Rosalina já não era a mesma cotovia alegre e buliçosa, cantadora e risonha; se cantava agora, era triste e suspirando. E as suas notas e suspiros iam, repassados de muita saudade, em busca de Miguel, que, ao chegar o seu velho inimigo, arrancara-se dali, como o galho despartido que o furacão arremessa com estrondo ao longe.
Ângela, cada vez mais devota, passava agora a maior parte do tempo a rezar.
Desconsolado se tornara esse lar, que já nalgum tempo fora vivo quadro de paz e felicidade.
Agora o quadro era sombrio.
Três únicas figuras formavam o primeiro plano. – Um velho áspero, que cisma – uma devota, que reza – uma filha, que suspira; e lá, no último plano, meio escondido nas névoas do poente, um vulto esbatido nas meias- tintas do horizonte – um homem, que chora abraçado a uma rabeca. Ah! ainda há no quadro uma forma negra, mais um borrão que uma figura – o cão.
Também vivia triste e chorava o animal, que em noites de luar soltava uns uivos tão arrastados e queixosos, que enterneciam o coração da gente.

9

Assim decorreram duas estações, impregnadas, com a vinda de Maffei, de aborrecimento e marasmo.
Uma noite, estavam todos reunidos em volta da mesa; era a hora da ceia. Rosalina servia, preocupada, um prato de peixe com lentilhas; reverberava-lhe nessa ocasião uma esperança na alma, tinha de todo resolvido falar ao pai a respeito de Miguel.
Ângela conhecia os planos da pupila e prestava-se, se fosse necessário, a ajudá-la.
A refeição passou-se silenciosa; ao terminarem-na, quedaram-se por meia hora, imóveis nos seus lugares, mudos.
Ouvia-se lá fora bater o vento nas oliveiras, ouviam-se as cantigas longínquas dos pescadores nas praias opostas.

Rosalina, com as mãos frias, trouxe a Maffei o cachimbo.
O velho pôs-se a fumar voltado para o lado da rua e a seguir com a vista o caminho, que lhe nascia à porta. Estava sombrio como nunca.
Faltava a Rosalina ânimo de falar ao pai; finalmente, tomando uma resolução extrema foi-se-lhe encostar ao grosseiro espaldar da cadeira.
O homem de tão preocupado não se apercebera disso; um beijo da filha despertou-o, porém não o comoveu. Refratário à ternura, continuava secamente a fumar.
Rosalina, cujo coração pulsava cada vez mais impetuosamente, passou-lhe um braço em volta do pescoço, e, com a mão livre messando-lhe os cabelos; entre o receio e o desejo, mais medrosa do que terna:
– Estou triste!
– Por quê? – interrogou indiferentemente o pescador. Ângela ouvia com interesse este diálogo.
– Tenho medo de pedir-lhe uma coisa…
– E por que tens medo? – insistiu o velho, sempre a fitar maquinalmente a estrada.
– Porque vai ralhar comigo.
– Então queres pedir-me alguma tolice?…
– Não, senhor!…
– Então pede…
– Promete não se zangar?…
– Sim!
– E quando souber que tenho um namorado? – disse abaixando os olhos Rosalina, porém agora mais terna do que medrosa.
Ao ouvir as últimas palavras da filha, Maffei tirou vagarosamente o cachimbo da boca e voltou-se, cravando nela os olhos vivos e interrogadores.
A rapariga estremeceu empalidecendo, sentia-se já arrependida do que houvera arriscado e com dificuldade conseguiu dizer vacilante:
– Não, senhor! Não tenho!
– Com que, tens um namorado?! – repisava entredentes o pescador, ruminando a frase.
Rosalina conservava o olhar baixo e, perturbada, alisava com a unha do polegar da mão direita a costura do corpinho.
– Com que, tens um namorado?!… repetia o velho.
– Porém – disse trêmula e sem levantar os olhos Rosalina – ele me quer tanto! E eu estou tão afeita a vê-lo… – e abaixando mais a voz, quase a falar consigo, continuava – que era um bom moço, trabalhador, e que tudo era para bem, ele queria esposá-la, que…
– Quem é? – interrompeu asperamente Maffei.
– É… é… Miguel Rizio…
Um raio não produziria o efeito desta revelação. A fisionomia do velho alterou-se apopleticamente; firmado nas plantas, levantou-se, como impelido pelas molas da cólera e descarregou com bruta excitação na mesa, o punho cerrado e nervoso.

Foi um avermelhar de olhos, um crispar de lábios, um contorcer de nervos, mais rápidos que o relâmpago. Estava transformado.
– Miguel Rizio! Um miserável!… E ria-se ironicamente.
Rosalina, toda trêmula, tinha a cabeça baixa e o olhar arrependido; apertava-se-lhe naquele momento o coração, como se tivesse cometido um crime; dos lábios, semi-abertos, fugia-lhe um vozear frouxo e trêmulo, como um cardume de mariposas.
O vulto sombrio e preocupado do velho começou a passear automaticamente de um para o outro lado da casa.
Tinha na fisionomia o sobressalto do marinheiro em perigo, nos movimentos umas ligeiras crispações, que lembravam o balanço do navio.
Era um capitão no seu tombadilho; as sombras do passado e do futuro, as vagas do grande oceano que o embalava; a confissão da filha, o vendaval.
E assim passeava sem se dirigir a ninguém; falava sem se voltar para Rosalina, parecia conversar com Deus, ou com o demônio! Saíam-lhe da boca as palavras escandecidas e ásperas como as pedras de um vulcão.
– E necessariamente ele vinha cá!… E eu ignorava que a minha casa era freqüentada por um Miguel Rizio!…
E voltando-se depois para a filha, como se falasse a um marinheiro, exclamava em tom de ordem:
– Não quero casar-te com um maltrapilho daquela laia! Entendes?! Ele bem o sabe, que me evita, o miserável!… Tenho-te reservado, nome e posição! Somente de ti depende a minha e a tua felicidade, pelo menos enquanto fores bela! Nada tenho que recear daquele mendigo, porque partimos depois de amanhã para Nápoles! Veremos se o maldito lazzarone vai lá perseguir-nos! E quanto a ti – bradou ele com mais força, apresentando a cara defronte da de Rosalina – quero que não o tornes a ver!… Entendes?!…
– Sim, senhor – fez timidamente Rosalina.

10

Ir para Nápoles!
Viver na grande capital, com opulência, beleza, mocidade, saúde, alegria, admiradores; isto é, realizar o mais dourado dos sonhos, a mais sonhada das esperanças, o desejo mais querido e a mais brilhante expectativa do coração de uma mulher bela e vaidosa.
Tal era o quadro que Maffei descortinava aos olhos fascinados da

filha, tal era a cornucópia abundante, cuja fortuna sufocava de alegria o coração, ainda tenro, de Rosalina.
Do fundo da sua obscuridade, sentia a formosa filha do pescador as convulsões da pérola nas profundezas do oceano.
Era a sede formidável de luz e de brilho! De admiração e de inveja! A febre de aparecer e ofuscar! O direito da beleza e a impaciência do ouro!
Vaidade! vaidade grosseira da carne! que supõe desperdício esquecer na ostra singela e honesta a jóia digna de se corromper na cabeça de um rei!
Vai, criança sonhadora! E que te hajas tão ditosa que para ti Nápoles seja somente o que o diadema de uma princesa é para uma pérola.
Porém Miguel?! O querido namorado de Rosalina?!…
Oh! que imprudência… lembrar uma lágrima, quando se trata de todo um futuro de prazeres e galas!
Quem se importa da pétala de rosa, que o trem faustoso do rico, ao passar altivo, esmagou no caminho?!
Todavia, Miguel era um ponto sensível e doloroso no coração da moça ambiciosa. A despeito de tudo, ela ainda o amava, e, no meio dos sonhos de grandeza, tinha para o pobre artista um suspiro de amor e saudade, ainda o via, no fundo brilhante do seu quadro de irradiações e alegrias, sombrio, triste, meio espectro, meio homem, a chorar talvez, com certeza a sofrer. Via-o ela esbelto e delicado, contra a luz das suas esperanças, e sentia projetar-se no disco iriado de seu coração a sombra negra desse vulto querido.
Não há felicidade, por mais completa, que se não ressinta de uma mancha ao menos!
Todo e qualquer obstáculo, por mais mesquinho e miserável que seja, produz uma sombra relativa.
Subtraiam todos os mundos, todos! que o firmamento fique um nada infinito. Então deixem brilhar unicamente o sol, isolado e egoísta. Só ele! E a sua luz a perder-se pelo nada.
Não se pode certamente julgar mais completa e inteira luz; pois bem, tragam depois um grão de areia, só um! Coloquem-no defronte do sol e será perturbada essa imensa pureza de luz! Um mesquinho grão de areia contra a enormidade da luz do sol! Todavia o grão de areia será uma sombra!
Assim também grande e cheia era a taça de néctar, que Maffei entregara à filha, porém nessa taça havia uma gota de fel: era o amor do artista.
A fortuna passara a cobrir Rosalina de beijos, porém nesse aluvião de carícias foi de envolta uma arranhadura.
Pobre Rosalina!
E neste vacilar, entre a felicidade e a dor, entre o bem e o mal, escrevera a Miguel uma carta, contando-lhe, com honesta franqueza, o que se passara, e prometendo-lhe uma entrevista, às ocultas do pai.

O rapaz ficou fulminado ao receber a noticia; entretanto, sofreu todas estas coisas afetando a mais indiferente tranqüilidade. Exteriormente parecia no seu estado normal de tristeza e inteligência, e contudo não conseguiria, se o tentasse, ligar duas idéias.
Tinha a lucidez no olhar, porém as trevas no cérebro! De queixas, nem vestígios!
De resignação – todos os sintomas!
Depois da chegada do pescador, o músico nem cuidava de si; esquecera obrigações e talento!
Coitado! Sem família, sem um amigo ao menos, um companheiro com quem dividisse fraternalmente o seu infortúnio, sofria, o desgraçado, essa dor ignorada, que só tem uma expressão – a lágrima; só sabe um caminho – o do túmulo!

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