Cap 11 e 12

ESCRITO POR: Aluísio Azevedo

ANO: 1880

CLASSIFICAÇÃO:

11

Miguel voltou incontinenti.
A viagem foi demorada em virtude do caminhar incômodo da carroça. Mal chegado à cocheira, montou, sem tomar fôlego, um cavalo que lhe pareceu melhor e galopou para o lugar da entrevista.
Daí a pouco atravessava de vertiginosa carreira todos aqueles barrancos, impregnados para ele de saudade e tristeza, de amor e de fadigas.
Parecia mais galopar na impaciência de chegar do que no seu cavalo.
A solidão, o marulhar na costa, a hora adiantada da noite, erguiam-se como enorme fantasma de neblina e espuma, que lhe vinha avivar a cólera de Maffei; o luzir vermelho e colérico dos olhos da fera, ainda o sentia ele dentro de si, como duas brasas a lhe queimarem os ossos do crânio. Esses olhos, que Miguel viu pela última vez antes de cair no precipício, procurava desde então esconder com o manto claro das suas idéias; entanto, ele os sentia a queimá-las, a esburacá-las e, depois de encardi-las, reaparecerem ameaçadores e vivos, a espreitar de dentro os seus movimentos, palavras e mais íntimas intenções, como se fosse o próprio olhar da consciência, mas de uma consciência ébria.
Sim, porque a consciência também se embriaga, e nesse estado diz coisas sem nexo e às vezes obscenas.
Ela, como toda a mulher quando se embriaga, fica nojenta – arregaça as mangas e as saias, fuma, cospe-se toda, ri-se como os marujos e bebe como os soldados; perde, enfim, a vergonha e o pudor.
As grandes crises podem divinizar ou prostituir uma consciência do mesmo feitio que um grande amor pode divinizar ou prostituir uma mulher. A casta, a pudica, a terna consciência do artista dava nessa ocasião gargalhadas de barregã; contudo, lá ia ele a galopar com ela na garupa.
Levava consigo a bêbeda e pelo caminho abraçavam-se e beijavam-se como dois amantes doidos.
De fato é loucura o amor sem conforto que passa de cinco anos; o cérebro e o coração também concebem e os fetos às vezes saem alucinados, extravagantes e incoerentes.
A idéia fixa, que acompanhava Miguel há quatro anos, era um feto desse gênero, fecundado pelo amor e pela desgraça e endoidecido pelos próprios pais; esse feto crescera, crescera ainda mais e quando nasceu mamou nas tetas de uma fera.
– Uma fera doida, eis a idéia fixa de Miguel nessa noite; presa, era horrível; solta, deveria ser fatal.
Nesse estado chegou ele à cabana do desconhecido; apeou-se e empurrou com um murro a porta.
Sombra da Noite dormia tranquilamente sobre umas palhas no chão; a claridade amortecida das estrelas, que se introduzia pela greta da porta, iluminava frouxamente o interior miserável da casinha.
Miguel arquejava; dir-se-ia o ressonar da sua consciência ébria; à vista, porém da tranqüilidade rústica com que dormia o pescador, fugiram envergonhadas as suas suspeitas e foi cheio de confiança que se chegou para o acordar.
Sombra da Noite espichou uma perna, abriu duas vezes a boca e levantou-se finalmente, fazendo o sinal-da-cruz.
– Espere, homem! – disse ele a Miguel – não vá dar com as pernas por aí!
E recolheu-se ao fundo da casa, donde voltou pouco depois com um rolo de cera de abelha torcido e encerado.
– Sente-se por aí! Olhe, tenho só este madeiro; não faz lá muito bom assento, mas serve.
E empurrou para Miguel um tronco de nogueira, única mobília da
casa.
Miguel sentou-se, ardendo de impaciência.
O homem foi ao outro quarto, bebeu água de um púcaro de barro,
acendeu o cachimbo e fechou a porta com uma tranca de madeira pesada; depois, encostou-se à parede, com as pernas cruzadas e o indicador da mão esquerda engatilhado no cachimbo, e disse entre uma baforada de fumo e um bocejo:
– Agora vamos ao que serve!

12

Às quatro horas da manhã; já no Oriente passeava a aurora a sua alegria cor-de-rosa, contrastando com a terra toda tranqüilidade e sonolência; somente da choupana de Sombra da Noite uma claridade avermelhada empalidecia ao clarão matutino do dia.
Parece que a natureza ao acordar vai apagando com as brisas da aurora as luzes mesquinhas das alcovas do homem. Quão ridícula e miserável é a luz mortiça de uma vela em presença da luz vivificante do sol
– dir-se-ia o espírito de um homem comparado ao espírito de Deus.
Também devem ser assim mesquinhas e pálidas as nossas almas em presença do incriado no tremendo dia do Juízo Final!
A portinha da choupana rangeu, depois da detonação que fez a tranca pesada de madeira ao cair na terra do chão e deu passagem a Miguel, seguido de Sombra da Noite. O moço vinha transformado pela insônia e fadiga; o outro ajudou-o a montar o animal, que tosava fora os detritos da ladeira, dizendo-lhe secamente:
– Até amanhã…
– Então posso contar com o seu auxílio? – volveu Miguel, firmado nos estribos e segurando com uma das mãos o chapéu, que o vento se esforçava, por arrancar.
– Para a vida e para morte! – respondeu o pescador, recebendo dinheiro da mão que Miguel lhe estendia.
O cavalo disparou e sumiu-se com o cavaleiro na estrada. Pouco e pouco foi-se perdendo o som metálico da ferradura pisando o chão. Fechou-se de novo a porta da choupana sobre Sombra da Noite, e desapareceu a luzinha vermelha.
O sol acabava de levantar-se no horizonte, trêmulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima