A Intrusa | Capítulo XIV

A baronesa não recebera ainda a carta anunciada pela cartomante e andava inquieta, doente. Glória voltava radiante todas as segundas-feiras das visitas paternas e não tinha na boca senão o nome de d. Alice.Aquilo fazia recrudescer o desespero da pobre senhora.– D. Alice! d. Alice! não falas senão da tal d. Alice! que personagem!– Eu gosto dela…Prendendo as mãos da neta, puxando-a para si, a avó perguntava entre suplicante e imperativa:– Mas que te faz essa mulher para lhe quereres assim?– Nada… passeia comigo… conversa…– Tenho medo dessas conversas… É a tal história dos sapatinhos de ferro!– Da vaquinha Victória?– Sim… Que te diz ela?– Tantas coisas… Ontem fomos ao Jardim Zoológico. Vovó há de crer? Ela contou-me a vida daqueles bichos todos!– Mentiras… Que pode ela saber!– Eu contei a papai e ele afirmou que era verdade!– Ah! tu contas a teu pai tudo que ela te diz? Bem disse eu! É a tal história dos sapatinhos de ferro… Um dia há de enterrar-te como a madrasta fez à outra.– Mas ela não é minha madrasta! Nem diz nada de mal… Vovó pergunte só ao padre Assunção.Ele também gosta de conversar com ela. Ontem estavam muito tristes…– Ambos?!– Ambos.A baronesa riu-se.– De que se ri, vovó?– De nada… achei graça! Ia bem vestida a tua d. Alice?– Assim… assim… ela anda quase sempre com o mesmo vestido, quando sai. É pobre…– Ela usa anéis?… tem alguma jóia?…A neta admirou-se de ver a avó tão corada de repente; e, antes de responder à pergunta, exclamou:– Nunca vi vovó tão vermelha! – e depois, naturalmente: – Não usa anéis… também não usa jóias.– Nunca te falou da família?…– Nunca… Papai me recomendou que eu nunca lhe perguntasse por isso!– Ah! teu pai recomendou!… – Por que seria, vovó?– Porque geralmente mulheres assim não têm família.– Coitadas! Mas assim como? D. Alice é como as outras!– Talvez mais bonita…– Não… Ontem então ela estava com os olhos tão pisados!– Pobre infeliz!– Eu queria que vovó gostasse dela!– Para quê? Estamos muito bem assim… Cada um no seu lugar!– Já tenho aprendido muita coisa com ela…– Deus queira que não aprendas tudo!– Papai gosta que ela me ensine!– Ah…– Padre Assunção também… Ele ontem assistiu à minha primeira lição de desenho. Uma lição só por semana é pouco… Vovó deixa d. Alice vir cá de vez em quando dar-me outra lição?– Nunca!Glória recuou espantada; a velha conteve-se, e depois:– Os retratos de tua mãe ainda estão nos mesmos lugares?– Estão… um em cima do piano… outro no escritório… outro no quarto de papai…– Já tiraram o do quarto de toalete?!– Ah! é verdade! e outro no quarto de toalete! Como vovó se lembra!– Minha pobre filha!– O do quarto do papai está ficando branco…– Até desaparecer! É que a imagem de Maria está sumindo ao mesmo tempo da memória e do papel! – disse a baronesa abafando um suspiro.– Da memória de quem?!– Vai brincar, minha Glória; corre, faze das tuas brutalidades antigas… quero ouvir os teus gritos, as tuas risadas… Onde está a tua cabrinha? Já nem fazes caso dela!– Como não?! D. Alice até me prometeu uma coleira para ela!– Já me tardava…As mãos da avó afrouxaram. Glória fugiu para o quintal.– Está tudo acabado! Venceu e domina a todos. Glória, a filha da minha filha, talvez já ame à outra mais do que a mim!… Tem trabalhado, a maldita… e não há quem defenda a minha pobre Maria! Nem o Assunção… ninguém!…A baronesa revia a cena, que não lhe saía diante dos olhos: Maria, recostada nos almofadões da cama, muito diáfana, com os cabelos louros espalhados sobre os ombros magros e os olhos engrandecidos, circulados de violeta… À sua cabeceira, em pé, o padre Assunção, lívido, com os olhos velados por uma expressão de agonia dominada. Argemiro, de joelhos ao lado da moribunda; ela aos pés da cama, de mãos postas, olhando, na insensata esperança do milagre!Na sua alma ecoava ainda a vozinha da filha:– Jura, Argemirao, que não te tornarás a casar…– Juro!– Jura que viverei sempre no teu coração!– Juro!A voz dela era como um sopro; a dele, formidável!Maria morreu sorrindo, com os dedos embaraçados nos cabelos do esposo… Não falara na filha… não olhara para a mãe. Fora toda dele… e ele repelia aquela imagem angelical, para substituí- la pela de uma mercenária! Aquela amaldiçoada. Como expulsá-la dali?! Não estaria perdendo muito tempo?… Uma tarde, o Feliciano procurou-a; e ao relatar-lhe a sua espionagem ela mandou-o calar-se.Não queria saber de nada por esse modo. Que se fosse embora!O negro não pôde reprimir um movimento de espanto. Não fora ela que o impelira àquilo? Fora, mas em um momento de desânimo e de fraqueza. Envergonhara-se. Readquiria a calma;estava feito o seu plano. O negro foi despedido sem explicações e com a proibição de acompanhar a moça.Feliciano saiu murcho, maldizendo as mulheres.A baronesa dirigiu os seus passos pesados de mulher gorda para o escritório do marido, que se entretinha na coleção do seu herbário.– 325… – murmurava o barão, olhando para as suas listas; e depois:– Que temos? – perguntou ele sem levantar a cabeça, mas percebendo no ar qualquer novidade.– Que tomei uma deliberação.– Qual?…– Ir morar com Argemiro.– Hein?– Ir morar com Argemiro.– Ora essa!O barão tirou os óculos e olhava agora de face para a mulher.– Que idéia!– Como outra qualquer… meu velho…– Qual! nós não podemos viver na cidade!– Por que não?– Por quê?… por tudo! Tu gostas desta liberdade… há trinta anos que te enterraste aqui e que daqui não tens querido sair para nada… eu, ao princípio, confesso, fazia sacrifício; hoje não. Olha para esta mesa: vês? estou catalogando as minhas plantas… plantadas aqui na minha chácara e tratadas só por mim!…– Virás à chácara de vez em quando.– Estás doida!– Nunca o estive menos!– No tempo em que Maria era viva nunca pensaste nisso, e então agora… Ora adeus!– No tempo de Maria eu não era lá precisa para nada; e

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