fevereiro 2024

Uma Lágrima de Mulher | Cap 15 e 16

15 Continuava o sopro brando e sussurrante da brisa do mar.Rosalina tinha a cabeça pendente para a terra e os seus cabelos, indiferentes, brincavam ao soprar travesso da brisa com as pedrinhas soltas na ladeira.O silêncio principiava a coalhar.A cinco passos de distância, de pé, com uma lanterna furta-luz na mão esquerda, e com a direita sustentando uma machadinha de abordagem, estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a boca cerrada a salivar bile.Luzia-lhe o olhar com a mesma vermelhidão da lanterna; os cabelos empastados de suor, caíam-lhe úmidos pela testa. Estava medonho.Era um quadro sombrio e lúgubre.A figura austera do velho, mergulhada na penumbra, contrastava com o grupo iluminado do primeiro plano. A atmosfera começava de se fazer carregada e pouco e pouco escondera a lua.O foco da lanterna aumentava a densidade das sombras, onde os olhos de Maffei brilhavam como os de um gato bravo. Esse olhar tinha as fosforescências da pupila do tigre. O desgraçado Miguel sentia mais que nunca a influência magnética daqueles olhos que o fitavam da escuridão; afiguravam-se-lhe a própria sombra a espiá-lo.Nessa ocasião a lanterna tinha um quê de humana e atrevida: parecia uma cara risonha e irônica a contrair-se no vidro sujo de pó e a deitar para fora a língua comprida e ensangüentada, língua de luz, cuja claridade doía como um insulto.Quando essa claridade caiu em cheio no rosto de Miguel produziu- lhe o efeito de uma bofetada. Estremeceu e corou de vergonha.Felizmente voltara-lhe o sangue-frio.O velho, com um gesto imperioso e grosseiro, ordenou-lhe que o acompanhasse; Miguel maquinalmente abaixou a cabeça, enquanto Maffei, sempre calmo, deu-lhe indiferente as costas e pôs-se a subir a ladeira.Rosalina permanecia sem sentidos nos braços do amante, que, com tranqüila delicadeza, segurou-a pelos joelhos com a mão direita e com a esquerda amparou-lhe a cabeça lânguida, e, como uma mãe faria ao pequenino, deitou-a carinhosamente no colo: depois, segurando-lhe as costas com o braço, fê-la descansar com cuidado a cabeça em um dos seus ombros, e começou a seguir silenciosa e vagarosamente o velho.A luz da lanterna ia gradualmente amortecendo, à proporção que no céu o negrume se desenvolvia.No meio do silêncio, destacavam-se os passos cadenciados do velho e o ranger de galhos e folhas secas, que o outono arrojara ao chão.Um ou outro passarinho, enganado pela claridade da lanterna ao passar Maffei, piava do seu esconderijo, cumprimentando o dia artificial.Quando a gente sobe uma ladeira, qualquer peso estafa logo e parece avultar extraordinariamente.Depois de cinqüenta passos Miguel sentiu-se exausto. À proporção que ia subindo, mais íngreme, mais pedregosa e mais difícil era a ladeira; firmava o pé, e a pedra em que o firmava desprendia-se a rolar ruidosamente até a praia; então o equilíbrio e a agilidade substituíam as forças, que aliás lhe minguavam.Para animar-se apertava de vez em quando o corpo de Rosalina, ao que a desfalecida respondia com um suspiro tranqüilo e duvidoso, como o ressonar de uma criança adormecida.Porém pouco e pouco foram desaparecendo os últimos recursos e reproduzindo-se as dificuldades: o suor jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a língua seca; o coração doído; a cabeça perdida; a respiração cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o cansaço fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias. E nessa vertigem acompanhava ele com a vista esgazeada a luz vermelha da lanterna, que gradualmente ia-se afastando, diminuindo sempre.Sem saber por quê, ligava certa correspondência entre as próprias forças e o bruxulear trêmulo da flama; parecia-lhe que, extinta aquela luz, faltar-lhe-ia o ânimo para o resto do caminho; pedia mentalmente a Deus a vida para ela, com o mesmo fervoroso interesse como a pediria para si.Contudo, a lanterna estava já nos seus últimos arrancos.O velho tinha com vantagens de forças aumentado o espaço entre si e Miguel; mais dez passos, oito! Cinco passos! Dois… e chegou!A lanterna escondeu-se, a luz desapareceu para Miguel. O rapaz vacilou, ia cair! Equilibrou-se!…Um vozear confuso e penetrante parecia-lhe dizer aos ouvidos – ânimo!Um esforço mais! Um último arranco!O moço reuniu os destroços de suas forças; beijou com os lábios cobertos de suor o rosto gelado de Rosalina. e cortou de carreira os últimos trinta passos que lhe faltavam.A lanterna crepitara o seu último clarão, podemos dizer, o seu último suspiro, brilhou mais forte e morreu!…Nisto, Miguel acabava de atravessar a porta do fundo da casinha branca e caía desamparadamente no chão, com Rosalina a seu lado.Desabou, quase morto.O suor corria-lhe de todo o corpo: a caixa dos pulmões erguia-se e abaixava-se com a sofreguidão de um fole enorme fazendo grande rumor a respiração ao sair; a voz desaparecera; as pálpebras fecharam-se; o suor convertera-se em umidade pegajosa e doentia. como a última transpiração de um tísico.Sentia vertigens e vontade de vomitar. Era um incômodo comparável ao enjôo do mar. 16 O pescador foi ao interior da casa e pouco depois voltou. Com a presença do velho, Miguel ergueu-se de um pulo – era outra vez um homem.Num dos ângulos sombrios de um quarto, Ângela, ao clarão minguado da luz do azeite, orava à Madona; a claridade mortiça do nicho escorria até à varanda e batia em cheio na palidez nublada do rosto de Rosalina. Estava sinistramente encantadora.Maffei aproximou-se dela, arrastou-a até o leito e voltou.Um gemido da desfalecida atraiu para aí no mesmo instante Ângela; para os corações extremosos, um gemido é sempre um apelo urgentíssimo. Voltava o velho com as mãos vazias e o olhar tranqüilamente feroz; Miguel não era covarde, esperou-o sereno, de braços cruzados.– Precisamos nos entender, disse Maffei com aspereza. Venha! E tomou o lado dos abrolhos, à esquerda da casa.Miguel seguiu-o silenciosamente. Entranharam-se na picada e desapareceram.O caminho não era freqüentado, como que se tornava mais difícil e em parte quase intransitável.Miguel apenas o conhecia; o velho, porém, apesar dos obstáculos e do negrume da noite, que se tomara sombria, caminhava desembaraçadamente e até

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Uma Lágrima de Mulher | Cap11 até 14

11 A casinha branca ficava situada em um dos extremos da ilha, para as bandas do nascente.Era um ponto magnífico.A modesta e simpática vivenda olhava de frente, podemos dizer, sorrindo, para a estrada, que conduzia ao centro povoado da ilha; do fundo saía-lhe correndo, em distância de seiscentos passos, a nossa já conhecida alameda de oliveiras, cujo solo formava um declive suave e fértil, plantado de ambos os lados, com variedade e gosto, até onde o terreno ia pouco a pouco se tornando mais íngreme e estéril com a vizinhança do mar.Então principiava uma ladeira pedregosa, que ia acabar, em grande distância, numa ampla e formosa praia, de areias claras e batidas livremente pelos ventos.Do lado direito, avizinhava-se o mar, entre o qual e a casa interpunha-se somente uma clareira, onde Rosalina costumava sentar-se à tarde, e uma moita de espinheiros, espécie de cerca natural, que ali entrançara a natureza, para servir de ameias, que resguardassem as bordas perigosíssimas desse lado.Do esquerdo, o espaço entre o mar e a casa era desproporcionalmente maior, porém menos cultivado e coberto de uma vegetação enfezada e má. Por entre esse mato nascia uma picada, tão irregular e confusa, e tão dificultada pelos abrolhos e sarças, que quase não se deixava perceber; e tanto mais ingrato era o solo, quanto mais se afastava da casa.Perto desta era a terra cultivável e solta, mas ia gradualmente se tornando calcarífera até chegar ao estado de pedra, à proporção que se aproximava das bordas da ilha, terminando por um pedregulho alcantilado, inteiramente liso e escorregadio, pelo salpicar constante do pó úmido das vagas, que se despedaçavam contra ele. A rocha ficava a pique sobre o mar, um precipício medonho! Nas noites claras do estio, alguém que trepasse à penedia até galgar os alcantis aprumados e reluzentes, abrangeria, só com um abraço de olhos, a imensidade dos horizontes celestes e marinhos; e se, chegado à borda do abismo, se debruçasse um pouco sobre a ingremidade da rocha, julgar-se-ia solto no espaço, sem ligação alguma com este mundo e só preso a Deus pelo espírito.Então sentiria debaixo dos pés os soluços espumosos das ondas, e sobre a cabeça a linguagem enérgica do nordeste, revelando à natureza adormecida os mistérios de criação dos mundos.E o mugir dos ventos e o rugido colérico do mar lhe pareceriam nesse instante de transporte, o resumo supremo de todas as forças, de todas as paixões, de todas as virtudes, de todos os vícios, de todas as tempestades dos homens e de todas as tempestades dos elementos; chegar-lhe-iam ao coração como o índex fabuloso do universo.Assim, medonho e belo, era o lado esquerdo da casinha branca, o que o tornava desprezado e quase ignorado, a não ser pelas gaivotas e outras aves aquáticas, que lá subiam nesses cumes, à procura do pouso e da solidão. 12 Tinha começado o inverno e, apesar disso, a noite marcada para a entrevista dos dois amantes era tão serena, que faria chorar de inveja a vaidosa primavera.Nem uma nuvem perturbava o aspecto ingênuo e puro do céu.As oliveiras solitárias e esguias, como toda a vegetação de Lípari, em virtude da leveza da atmosfera, beijavam-se volutuosamente, impelidas pela brisa fresca do mar, e projetavam no chão, contra a luz da lua, uma sombra de triplicado comprimento.O vento estorcia-se, uivando como um doido de asas e redemoinhava em torno das oliveiras, cujas sombras desenhavam na aspereza do solo fantasmas singulares e monstros extravagantemente disformes.Às vezes o doido mudava de rumo e quebrava no ar o murmúrio das cantigas dos pescadores, que estendiam a rede do lado do poente.E assim vagavam, soltas e desarticuladas no espaço, vozes confusas e disparatadas.O mais dormia silenciosamente.A casinha branca parecia, ao luar, embrulhada com frio, num lençol de linho alvo.A lua aborrecia-se, coitada! No seu eterno isolamento! 13 Por volta das dez horas da noite um barco costeava a ilha pelo lado da praia.De vez em quando o vento, caprichoso e vadio, trazia de rastros alguns fragmentos de uma bela barcarola, que necessariamente vinha do barco. Eram as notas de uma chorosa rabeca, espécie de harmonia chorada, ou melhor, de pranto harmonioso. O certo é que, música ou pranto, doía à gente ouvir soluçar daquele modo. Se fosse possível fazer do coração um instrumento e tangê-lo, com certeza havia o som de ser o mesmo que então se ouvia.O barco vinha-se aproximando lentamente da praia, e lentamente ia- se calando o instrumento; daí a pouco paravam ambos, e um vulto de homem, com ares de pescador, soltando o ferro, pojava na areia.O barqueiro depositou a rabeca sobre um dos bancos de seu barco, conchegou melhor o capote de pescador e, dando alguns passos pela praia, encarou a silenciosa ladeira, frouxamente clareada pelo luar. Miguel não faltara à entrevista, porém, temendo vir pela estrada e ter que passar pela porta de Maffei, resolvera entrar pelo fundo, disfarçado em pescador; precauções necessárias para não ser descoberto pelo pai de Rosalina. O mar sempre era mais seguro.Posto em terra, atravessou o espaço, compreendido entre a água e a ladeira e deitou a subir cautelosamente.Subiu sempre até encontrar a primeira árvore; aí parou e ficou a escutar.Era tudo absolutamente silencioso.Miguel encostou-se ao tronco da árvore e esperou.Sentia-se mal, o pobre moço! Desde que recebera o bilhete de Rosalina, meditava um meio de salvar a situação, e, por mais que desse voltas à cabeça, nada descobrira.Agora, prestes a vê-la, encostado à oliveira, com o cotovelo direito na mão esquerda e com a outra escondendo o rosto, fazia castelos magníficos e desfazia-os, com a mesma facilidade. Imaginava as coisas mais absurdas, os projetos mais irrealizáveis.Lembrava-se de raptar Rosalina, fugir com ela para qualquer parte; ou empregar-se em Rezina, como operário, e especular, como fizera Maffei; ou deixar-se morrer; ou matá-la.Enfim, mil outras idéias deste gênero encontravam-se, debatiam-se, a morderem-se sangrentas, no cérebro molesto do pobre rapaz, como, na mesma pátria, irmãos se devoram e matam em tempo de guerra intestina.Assim permanecia ele estático, com o rosto escondido na mão esquerda, invejando

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