dezembro 2023

A Intrusa | Capítulo XVIII

CAPÍTULO XVIII A pouco e pouco, autorizada pela ausência do genro, a baronesa tomara posse da casa.O marido intervinha às vezes, aconselhando que deixasse à outra todas as determinações, ao que ela respondia – se valera a pena ter saído da chácara para se pôr à tutela da inimiga!– Não, meu velho, tem paciência, eu estou de sentinela à última vontade de minha filha. Ele jurou: terá de cumprir o juramento. Esta mulher é mais perigosa do que eu pensei, porque é também hipócrita e sabe conquistar pelo jeito toda a gente. Menos a mim! Glória pertence-lhe. Já me tem feito chorar, a filha da minha filha, por quem tanto me desvelei sempre! Até parece que já lhe vou perdendo o amor… Não percebes o cálculo?– Não percebo nada. A rapariga trata como pode de ganhar a sua vida. O que tu fazes, filha, não é digno de ti. Inventaste uma paixão, onde talvez não exista nem simpatia, e vives a debater-te diante de fantasmas. A moça é fina; não é do estofo comum das governantas, isso é certo… Mas sabes lá, tu que tens vivido sem necessidades, a que sacrifícios obriga a pobreza?– Não faltam ofícios!– Mas sobejam concorrentes… Eu sei o que vai por aí! Olha: vou apontar-te um exemplo: o dr.Teobaldo Ribas. Lembras-te? Um engenheiro distinto! Está com um emprego secundário numa companhia de empreitadas; a família habita numa casinhola de porta e janela na Cidade Nova e pode-se adivinhar o que se passa lá dentro, entre oito crianças fracas e o casal sem recursos… Eu, francamente, não sei mesmo como esta pobre moça ainda te atura. Pelas desfeitas que lhe tens feito, se fosse outra…– Ter-se-ia ido embora. É o que eu digo. Não tem brio. Mas o meu partido está tomado; custe o que custar e seja como for hei de pô-la fora daqui.– Não faças isso!– Ora essa! Por que não? – Não estás em tua casa!– Estou na casa de minha filha.– Para o que te deu! Tua filha só existe na tua imaginação. Capacita-te disso, pelo amor de Deus! É um caso de obstinação incompreensível, em ti, que foste sempre tão criteriosa. Acalma-te… e voltemos para a nossa chácara. Eu estou farto de cidade até aqui! – e apontava para a calva.– Voltaremos… deixa estar… eu também já não posso mais… A minha vida é um inferno… Todos esquecem, todos gozam, só eu vivo acorrentada ao passado, e revendo a todos os instantes a cena horrível da morte de Maria! Está aqui tudo, tudo, estampado em meus olhos, enterrado no meu peito. A minha vida parou naquela hora! Não vejo, não ouço, não sei de mais nada. Os anos e os meses têm corrido para mim ignorados. A minha existência é a existência da minha filha. O coração dela ficou dentro do meu. É o que eu sinto! Hei de defendê-lo até o último extremo! Às vezes, também eu acredito na loucura… Ao princípio, enquanto Glória era só minha, sentia até certa suavidade em conviver assim com a minha morta… Nota que já não digo: a nossa! Mas agora, agora que a inimiga, a intrusa, me rouba também o amor da minha neta, sinto dentro de mim um clamor de choro que não posso sufocar, por mais que me esforce! Sou uma abandonada.– Glória adora-te como sempre…– Foge-me… esquiva-se… acha a minha companhia monótona… A outra conta-lhe histórias, mostra-lhe gravuras, saracoteia-se com ela pelas ruas, até já a surpreendi pulando na corda com a menina, como se fossem duas colegas da mesma idade! As crianças gostam de alegria. É natural que a minha Glória a prefira a mim! Tenho ciúmes dela, sim, tenho muitos ciúmes… E ainda queres que a poupe e que me deixe roubar sem um protesto. Nunca!– Consulta um médico… a tua excitação é doentia…– Já me tardava! Um médico, e água de flor de laranjeira! A outra também te conquistou a ti. Se te mandar dançar sobre a sepultura de Maria… tu dançarás?– Talvez!– Ainda o confessas!– Mas, filha, que queres que eu faça?! Tenho pena de ti, mas não te posso dar razão. Quiseste vir, vim. Consome-me o sacrifício. Faze o que entenderes, contanto que voltemos depressa para a chácara. Consente, porém, que eu lamente a outra, como tu lhe chamas, e que a ache digna de maiores considerações. Agora deixa-me prevenir-te de que o Argemiro se cansou do desterro e volta amanhã.– Escreveu-te?– Telegrafou a d. Alice, pedindo-lhe que mandasse o Feliciano esperá-lo à Central.– Ora vê tu! Telegrafou à outra, em vez de o fazer a ti, como era natural. Queres mais claro?!– Eu sou hóspede. É ela quem põe e dispõe aqui.– É a dona da casa!– Tal qual.– E achas isso tolerável?– Perfeitamente. É paga para isso.– Ele deve chegar?…– Amanhã, às oito da manhã!…– São?…– Três horas da tarde.– Tão pouco tempo!– Achas pouco?! Repara que há um mês e dois dias que ele partiu; e para quem conhece os hábitos do Argemiro, faz espantar tamanha demora…– Fugiu de nós… – Já pensei nisso…– E eu que o amava como filho!– E ainda lhe queres muito bem.– Não…– Lembras-te de ser sogra, quando já não o és…– Sou.– Em vida de Maria o teu genro era para ti um deus!– Porque fazia a sua felicidade. Mas agora traiu-a… Vamos lá para baixo. Onde estará Glória metida? Amanhã… ele volta amanhã… e eu tenho sido tão cobarde… não sei o que me dá, quando vejo aquela mulher! Delambida. E embaixo daquela pele macia ela tem uma alma de ferro. É dura.– O Argemiro não há de gostar quando souber que nunca a admitimos à nossa mesa…– Ela ia à dele porventura?– É diferente.– Ora…– Também não lhe agradará a confiança exagerada que dás ao Feliciano…– É cria de casa…– É um velhaco.– Também te desagrada?– Completamente.– Pobre rapaz… Prouvera a Deus que a outra fosse tão sincera… O barão limitou-se a sorrir, com escárnio e tristeza.Desceram.A baronesa gritou:– Feliciano! Onde está minha

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A Intrusa | Capítulo XVII

CAPÍTULO XVII A praia de Botafogo regorgitava; era dia de regatas. Por todo o cais o povo apinhado olhava para o mar coalhado de barcas, palpitante de luz. Nas arquibancadas, à beira de água, as toaletes claras das moças despertavam a idéia de grandes flores variegadas, desabrochadas ao sol, e, na rua, carros e bondes arrastavam-se cheios, vagarosos, por entre a multidão. Mas a beleza era o mar, cuja superfície apenas enrugada de um azul violento, toda se paletava de escaminhas de ouro. Andavam pelo terceiro páreo. Baleeiras velozes, bem remadas, demandavam as balizas na ânsia da vitória; outras, em repouso, deixavam-se balouçar pela água, molemente, enquanto lá no alto as gaivotas espalmavam as asas tranqüilamente.– Belos rapazes! – observou Adolfo Caldas, olhando com entusiasmo para a tripulação das baleeiras.Armindo Teles acenou com a cabeça que sim, e chupou com mais força e maior satisfação o seu havana.Caldas continuava à meia voz:– Contempla aquele bíceps e cora! Homem da cidade, da manhosa política e das sobrecasacas bem feitas, não te envergonhas dos teus braços diante daqueles?…– Se eu discutisse a murros…– Quanto mais vigoroso é o braço, mais franca é a língua!… Digo-te por mim, que as minhas banhas sentem-se humilhadas, ofendidas, por aqueles músculos. A nossa raça salva-se. Ainda bem para os pais de família… Vê o modo enérgico e bem ritmado por que os remos desta baleeira vêm golpeando a água…Teles soprou a baforada do seu charuto aromático, e respondeu:– Prefiro olhar para o pavilhão e as arquibancadas… Se os rapazes são fortes, as mulheres são bonitas, e eu guardo para elas, em todos os tempos e lugares, a minha predileção. Hum! Isto hoje está chique… Se as galerias da Câmara tivessem esta sociedade… Eu falaria todos os dias!…– Vês que as mulheres dão mais apreço ao músculo que ao verbo… Empresta-me o binóculo.Dança-se nas barcas…– D. Maria Helena está no pavilhão… Também lá estão as Tavares… A Chiquita Maia… A Pedrosa e a filha. Precisamos cumprimentá-las.– Depois… Deixa-me beber saúde pelos olhos. Faze outro tanto, que precisamos ambos de lavar a alma…– Chegou agora a Joaninha Mendes…– E ela? – indagou Adolfo sem desassestar o binóculo da barca, onde se dançava.– Ainda a não vi… Mas há de vir!– Lá passam os vermelhos a dianteira!– Não… Por enquanto ainda são os azuis…– Os demônios têm força… Agora!– Bravo!– Viva!– Bravo! – gritaram muitas vozes a um tempo, numa explosão de entusiasmo. Ao lado deles um moço gordo berrava, agitando o chapéu. Teles sacudiu a cinza do charuto da lapela da sua sobrecasaca avelã, onde sorria a graça de uma orquídea lilás, e voltou-se todo para o pavilhão.Sinhá debruçava-se no pavilhão do júri, com as faces afogueadas e o olhar chamejante. A seu lado, a mãe lambiscava bombons e as Moreiras, do Catete, sacudiam os lenços com frenesi: – É o Boqueirão!– É o Flamengo!– Não…– É!– Bravo!– Bravo!Os nomes dos clubes andavam no ar, como as gaivotas. Afinal, um deles ganhou o páreo.Rompeu a música e a baleeira vitoriosa veio receber as saudações, que rebentavam em palmas por todo o cais, como uma onda. Ao passar pelo pavilhão, Sinhá, toda debruçada, vermelha como uma rosa, atirou-lhe o seu ramo de violetas. Aparou-o no ar um rapaz loiro, batido de sol, de rija musculatura e olhos brilhantes. Trocaram um sorriso luminoso.– A mocidade!… A mocidade! É isto… Um aroma que atravessa o espaço… Um relâmpago que ilumina a vida, para deixar saudades… Este sim! – comentava Caldas consigo, lembrando-se do Argemiro ; e concluiu: – Agora a Sinhá escolheu bem… Isto é, não escolheu, achou. Aquilo é amor! E, dirigindo-se ao Teles: – Vamos agora cumprimentar as senhoras, com escala pelo bufê. Estou com sede.O deputado acariciava o queixo nu com a mão gorducha, em que rutilava um rubi. Seus olhos vivos, de pestanas curtas, furavam por entre cabeças e ombros, à busca de alguém.À roda comentavam o páreo. Havia descontentes; moças indignadas, outras quase chorosas, rapazes amuados. Tinham perdido. Mas outros e outras gesticulavam com alegria por aquele triunfo, que dava mais uma medalha ao clube da sua simpatia.Falava-se alto nas arquibancadas. Os sons da banda de marinheiros no Toureiro da Carmen não permitiam segredos.Em toda a linha do cais os guarda-sóis de cores diferentes, lembravam uma vegetação movediça de cogumelos fantásticos, desde os pequeninos, das crianças que assistiam à festa sentadas no paredão, com o olhar estúpido para o quadro policromo, até os grandes, protetores de velhos prudentes e amigos da sombra.Corria uma aragem forte. Agitavam-se no ar os galhardetes vistosos e as bambinelas do pavilhão central, como a acenar a toda a gente que fosse para ali, gozar aquele quadro de luz!O deputado impacientava-se. Adolfo parecia grudado ao bufê, comendo sanduíches e bebericando cerveja, no meio de um grupo de remadores muito adulados pela admiração dos outros. Trocavam-se brindes apressados; e na alegria, até um velhote pálido e encartolado trauteava a Carmen, acompanhando as sonoridades da banda.O intervalo acabava-se. Ouviu-se o estampido do sinal de partida. Voltaram-se para o mar.– Lá vem ela! – exclamou Teles à meia voz, sobressaltado.– Um ibisco! – observou Adolfo, olhando para uma lancha que se aproximava do cais.O ibisco era a madame Senra, toda de escarlate, com os bandós dourados rebrilhando sob as papoulas do chapéu. Ela agitava a sombrinha vermelha,rindo-se para o Teles, que se precipitou alvoroçado e inconveniente para a receber no desembarque, sem atenção aos bigodes retorcidos do Senra e à escolta de moças que a acompanhavam.Caldas imaginou:“O patife do Teles vai passar uma hora feliz, uma hora ligeira, dessas que suspendem a vida!Por que será que as mulheres bonitas dão geralmente preferência aos banais? Esta é linda. Uma flor!… Sempre que a vejo sinto os meus pensamentos transformarem-se em abelhas… ela mesma deve sentir-se como que nimbada por um adejo de asas… volúpia dos olhos, tentados pela sua graça… Não se me dava!… Que lhe dirá o idiota do Teles? Sua Excelência alcançará ali o que não alcança na Câmara: chegar ao fim?… Pois

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