Tarde de Clássicos

A Intrusa | Capítulo XX

– Feliciano! diga à sra d. Alice que eu desejo falar-lhe…– Ela está na sala de jantar, com d. Maria da Glória…– Bem, então não a incomode; eu vou lá.O barão sumira-se atrás do genro, pela escada acima, e o padre Assunção seguiu pelo corredor. Glória enfeitava uma cesta de flores e frutas, dirigida pela governanta. Era para o centro da mesa do almoço. Assunção parou entre portas, ouvindo-as sem ser pressentido:– … Tenha o cuidado, Glória, de combinar as cores, de modo que umas façam ressaltar as outras… por exemplo, sempre que tiver flores escuras, como estas roxas, ponha-as ao lado de brancas ou amarelas… Refresque o musgo com água todos os dias… Não consinta na mesa de seu pai nenhuma falta… você já está uma mocinha… Hoje, por exemplo, ofereça-se para lhe descascar uma laranja, e assim procure servi-lo todos os dias… Não… essa maçã não fica bem aí… repare que é da mesma cor do pêssego… ponha-a antes aqui, entre esta camada de musgo…Assunção interrompeu-as:– D. Alice…Alice voltou-se. Estava pálida, com os olhos pisados de choro. Glória exclamou:– Ah! padre Assunção! estou muito triste.– Já sei; vai brincar um pouco, minha filha, preciso falar com a tua mestra…– Eu não sou mestra…– Assisti ainda a um trecho de lição!…– Conselhos… só…Glória, entretanto, sussurrava ao ouvido do padrinho:– Faça com que ela fique cá em casa, sim?! E saiu correndo.– Sabe o que a Glória me pediu?– Adivinho…– Recebi ontem uma carta do barão, dizendo-me que a senhora quer deixar esta casa…– Despediram-me.– Hein?!– Despediram-me.Assunção quedou-se atônito diante da moça.– Não se admire; os meus serviços deixaram de ser precisos, já sou demais aqui.– Mas…– Pressenti no senhor um amigo, e sei que me defenderá mais tarde. Isto já é uma compensação!Daqui a duas horas sairei desta casa…A voz tremeu-lhe, um rubor cobriu-lhe as faces, e concluiu:– Logo que tenha feito as contas com o dr. Argemiro…– Supus que a resolução tivesse sido sua, e por isso procurei-a em primeiro lugar, desejando convencê-la a mudar de idéia…– Enganou-se… Fui posta na rua, e se não fosse corajosa teria abandonado ontem mesmo o meu posto. Não quero que saiba pela minha boca o que se passou. Outros lho dirão. Só lhe peço uma coisa: afirmar que eu sou uma rapariga absolutamente honesta, se acaso ouvir qualquer alusão desairosa…– Não ouvirei; todos a consideram aqui e eu sei bem quem a senhora é. Estive em sua casa.– O senhor!– Mas não disse a ninguém. Descanse. Permita que a deixe, para ir falar à baronesa. Vejo que era a ela que eu me deveria dirigir primeiro… Em todo o caso, prometa-me não sair sem falar com o Argemiro.– É só por isso que eu espero.Assunção contemplou-a. Ela fizera-se de novo como um lacre.– Que tenciona dizer-lhe? – Prestar-lhe as minhas contas. Tenho tudo em ordem. É questão para vinte minutos… “Dizem-se num minuto mais de cem palavras”- pensou o padre consigo; “terão tempo deconversar!…”O Feliciano entrava e saía, remexendo nos talheres, abrindo e fechando gavetas, maciamente. Sentindo passos na escada, Alice fugiu para o interior. O padre voltou-se. Era o barão.O velho aproximou-se.– Então… como recebeu o homem a notícia?– Mal…– Hum… foi o diabo!…– A senhora baronesa?…– Oh, você sabe, minha mulher não pode tolerar a outra. Aquilo é uma doença. Doença que nem os médicos nem os padres curam… Esgotei todos os argumentos a favor desta pobre rapariga; afinal, compreendi que o melhor seria deixar correr a água ao sabor da corrente. Os fatos brutais resolvem às vezes questões delicadas melhormente do que palavras doces. Depois, esta situação é intolerável e não podia ser prolongada, sob pena de ver a minha mulher no hospício ou na sepultura… Sacrifício por sacrifício, mais vale o da moça… lá terá na própria mocidade consolação para os seus desgostos… se esse nome merece o dissabor do desemprego. Afinal, não devemos exagerar os fatos. Casas não faltam para essa espécie de serviço. Mais lamento eu o Argemiro, que vai voltar aos embaraços antigos logo que tornemos para a chácara… Veja você se conhece alguém nas condições de substituir esta moça… D. Sofia talvez possa indicar.– D. Alice é insubstituível.– Ora, ora! também você!– Eu, mais do que ninguém, posso afirmá-lo. Como sabe, Argemiro pediu-me que tomasse informações da governanta, logo que se decidiu a confiar-lhe a filha… A mim bastava-me vê-la e ouvi-la para perceber que a nossa Glória estava bem entregue… mas a missão era tão delicada, que insisti em levá-la até o fim, mais com o propósito de defender a pobre moça destes ataques previstos, do que por desconfiar dela. O caso ajudou-me. Um amigo de meu pai, o coronel Barredo, que tem a especialidade de saber a crônica de meio mundo, veio ao meu encontro, e por me ter visto a conversar com ela, desandou a falar a seu respeito, poupando-me o trabalho de uma inquirição, para que me faltava o jeito…– Isso seria vago…– Era positivo. O Barredo estava ao fato de tudo, conhecia té a fórmula do contrato entre Argemiro e d. Alice! Há desses homens extraordinários, cujas vistas perfuram paredes e desvendam mistérios… Ainda nós não sabemos do que se passa em nosso interior e já eles estão senhores do nosso segredo!– As informações que ele deu foram então…– Magníficas. Terei ocasião de repeti-las agora diante da sra. baronesa.– Pelo amor de Deus, não tente uma reconciliação! Seria recomeçar!– Não se tratará senão de uma reparação. Mas sempre os conheci justos e amigos do fazer bem.– Caridade bem entendida por nós mesmos é começada…– Não se fala agora de caridade, mas de justiça!– Dir-se-ia discutir-se a saída de um ministro de Estado!…– Esta é mais sensível e merece maior ponderação.– Enfim, o que está feito está feito. Parece-me que não vou gora pedir à menina que fique, pelo amor de Deus! Eu fiz muito dirigindo-me a ela e pedindo-lhe desculpa pela forma por que minha mulher a despediu…– Ah! e ela o que disse? – Gaguejou umas

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A Intrusa | Capítulo XIX

– Assunção!– Argemiro…– Fizeste bem em vir esperar-me; estou doido por conversar contigo; disseram-te lá em casa que eu chegaria hoje?– Naturalmente… eu não poderia adivinhar!… olha a tua mala… Pareces-me magro…– Um pouco…– Boa viagem?– Regular… Como está a minha gente? E tua mãe?– Dá a mala ao carregador… Conversaremos em caminho.– Tens razão; e eu estou com pressa de chegar a casa. Decididamente, abomino os hotéis. Que desconforto! que aborrecimento! que noite! Ah! Assunção, nunca o meu cantinho me pareceu tão delicioso como nesta ausência. Isto deve ser velhice… os meus ossos não se afazem a outros colchões, nem a minha cabeça a almofadas que não sejam as costumadas. Hás de acreditar que sofri de insônias em S. Paulo? Depois eu não tinha notícias! Glória escreveu-me duas cartinhas; tu nenhuma… Nenhuma! inacreditável o teu descuido! Meu sogro escreveu-me também, mas só falava na mulher e na neta. É verdade, o Caldas também me escreveu… Referia-se a ti…– Tiveste então cartas de todos!…Saíam da Central. Argemiro acenou para um carro.– De todos… mas incompletas… Só tu me poderias dizer tudo; és íntimo de minha casa, mais íntimo do que eu! Compreendes que eu fugi!– Por que, homem?!– Nem sei porque… medo do barulho, da intriga… de não poder conter o meu mau humor.Estava enervado, aborrecido… Depois arrependi-me. Não tinha que fazer; bocejava pelas ruas… o hotel indispunha-me comigo mesmo. Estou como o caracol, – não posso sair da minha casa sem perder a vida… Acredita: até do cheiro da minha casa eu tinha saudades! Parece-me incrível que um sujeito de vida bem organizada goste de viajar. Tu nunca viajaste. É uma maçada! Mas que diabo, tu não me dizes nada! – Não me dás tempo…– Tens razão; mas estou cheio até a raiz dos cabelos. Mal conversei durante a viagem; estava com a língua entorpecida. Este cocheiro é um lorpa… não toca os animais! De que te ris?! estou morto por beijar minha filha! Muito crescida? Tens ido lá todos os dias? Tens estado sempre com todos?…– Todos os dias, não… mas quando vou estou com todos…– Minha sogra ainda se demorará cá por baixo?… Isso é o que me interessa mais saber.– Ignoro… Eu tenho freqüentado menos a tua casa, receando que os barões achassem importuna a minha assiduidade…– Estás doido! Sabes que te estimam muito! Bem… e… não houve por lá nenhuma questão…– Tem paciência, escuta.– Mau!– Ontem à noite recebi uma carta de teu sogro, pedindo-me para vir esperar-te hoje à Central e prevenir-te de que a d. Alice só espera por ti para deixar a casa.Argemiro não respondeu logo, e, arregalando os olhos, voltou-se para o amigo, muito desapontado.– A notícia não é amável e acredita, Argemiro, que a dou com pena. Mas já agora deixa-me dizer-te que mais uma vez andaste impensadamente… Não deverias ter saído de casa nesta ocasião, tanto mais que já temias qualquer incidente desagradável…– Não consinto! Ah, eu é que não consinto; e o dono da casa sou eu! Por que sai a d. Alice? Não sabes?… Eu imagino: picuinhas… alfinetadas… tanto a aborreceram, tanto a azedaram, tanto a mordiscaram, que ela não pôde mais! Era o que eu temia, lá longe! Parece que estava adivinhando.Um inferno. Ora o que me esperava! E agora? Dize-me: e agora?!– Arranja-se outra…– Estás tolo! Outra! A facilidade com que se dizem asneiras… Nem tu pensas no que estás dizendo. Conheço-te bem; sei qual é a tua opinião a respeito dela… Eu é que fui um asno, um idiota; não devia ter consentido na vinda de minha sogra para casa. Foi ela que escangalhou a minha felicidade com as suas bobagens de velha tonta. Disseste bem, fiz mal em fugir. Fugi por pusilanimidade… pelo eterno prazer do sossego e do bem-estar. Fresco bem-estar, o dos hotéis! E agora, hein?! arranja-se outra! ora, que resposta! Se há outra como aquela!– Tu nem a conheces…– Nunca a vi, mas conheço-a, adivinhei-a; abstraí da personalidade. Ela é o meu conforto; a minha segurança, a minha felicidade. Agora explica-me tudo: que lhe fizeram?– Não sei, filho; mas creio que nada. Teu sogro, temendo a tua decepção, como se se tratasse de uma terrível catástrofe, escreveu-me ontem o que eu já te disse. A minha surpresa foi quase do tamanho da tua. Somente, eu espero conciliar as coias.– Ah, eu não… Acabou-se. Volto à ignomínia do Feliciano. Não. O Feliciano roda hoje mesmo a pontapés. Cachorro… Outra… outra… onde encontrá-la? Pensas que há muitas mulheres assim, por aí, à espera das minhas ordens? Tu estás bem convencido do contrário… Eu sei que a consideras muito… Já a tens defendido, à minha vista, quando a acusam. Por mim, declaro-te que acabei de conhecê-la nesta ausência… Por acaso, no dia da partida, juntei alguns livros avulsos pelas mesas e meti-os na mala. Em uma das minhas noites de insônia, no hotel, abri um desses livros, e verifiquei com espanto que ele pertencia a d. Alice. Lá estava o seu nome, por sinal com uma letra bem bonita… Era um livro inglês de poesias. A minha governanta lê versos; e de mais a mais em inglês!Folheei o livro com alguma curiosidade… Havia versos sublinhados, notas feitas à margem… Sabes que do meu exame de inglês não me ficou patavina… o livro não me poderia divertir; entretanto, não sei porque, era o único que me interessava! Comprei um dicionário e pude mais ou menos penetrar um pouco no mistério… Compreendes que isso não poderia deixar de impressionar-me… – Ela é inteligente…– Muito. Para ter a certeza disso eu não precisava das poesias inglesas; bastava-me a mudança radical de minha filha. Negarás isso?!– Não…– Lembras-te? Glória era terrível, intratável, brutinha! E agora? Está dócil, risonha, delicada. A avó perdia-a com os seus mimos e a d. Alice salvou-a. Tens reparado na boa pronúncia francesa de minha filha? Na véspera da minha partida ela leu-me uns exercícios do Método. Fiquei espantado. Um prodígio!… Logo, esta mulher, que ensina francês, lê versos ingleses, faz aquarelas

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A Intrusa | Capítulo XVIII

CAPÍTULO XVIII A pouco e pouco, autorizada pela ausência do genro, a baronesa tomara posse da casa.O marido intervinha às vezes, aconselhando que deixasse à outra todas as determinações, ao que ela respondia – se valera a pena ter saído da chácara para se pôr à tutela da inimiga!– Não, meu velho, tem paciência, eu estou de sentinela à última vontade de minha filha. Ele jurou: terá de cumprir o juramento. Esta mulher é mais perigosa do que eu pensei, porque é também hipócrita e sabe conquistar pelo jeito toda a gente. Menos a mim! Glória pertence-lhe. Já me tem feito chorar, a filha da minha filha, por quem tanto me desvelei sempre! Até parece que já lhe vou perdendo o amor… Não percebes o cálculo?– Não percebo nada. A rapariga trata como pode de ganhar a sua vida. O que tu fazes, filha, não é digno de ti. Inventaste uma paixão, onde talvez não exista nem simpatia, e vives a debater-te diante de fantasmas. A moça é fina; não é do estofo comum das governantas, isso é certo… Mas sabes lá, tu que tens vivido sem necessidades, a que sacrifícios obriga a pobreza?– Não faltam ofícios!– Mas sobejam concorrentes… Eu sei o que vai por aí! Olha: vou apontar-te um exemplo: o dr.Teobaldo Ribas. Lembras-te? Um engenheiro distinto! Está com um emprego secundário numa companhia de empreitadas; a família habita numa casinhola de porta e janela na Cidade Nova e pode-se adivinhar o que se passa lá dentro, entre oito crianças fracas e o casal sem recursos… Eu, francamente, não sei mesmo como esta pobre moça ainda te atura. Pelas desfeitas que lhe tens feito, se fosse outra…– Ter-se-ia ido embora. É o que eu digo. Não tem brio. Mas o meu partido está tomado; custe o que custar e seja como for hei de pô-la fora daqui.– Não faças isso!– Ora essa! Por que não? – Não estás em tua casa!– Estou na casa de minha filha.– Para o que te deu! Tua filha só existe na tua imaginação. Capacita-te disso, pelo amor de Deus! É um caso de obstinação incompreensível, em ti, que foste sempre tão criteriosa. Acalma-te… e voltemos para a nossa chácara. Eu estou farto de cidade até aqui! – e apontava para a calva.– Voltaremos… deixa estar… eu também já não posso mais… A minha vida é um inferno… Todos esquecem, todos gozam, só eu vivo acorrentada ao passado, e revendo a todos os instantes a cena horrível da morte de Maria! Está aqui tudo, tudo, estampado em meus olhos, enterrado no meu peito. A minha vida parou naquela hora! Não vejo, não ouço, não sei de mais nada. Os anos e os meses têm corrido para mim ignorados. A minha existência é a existência da minha filha. O coração dela ficou dentro do meu. É o que eu sinto! Hei de defendê-lo até o último extremo! Às vezes, também eu acredito na loucura… Ao princípio, enquanto Glória era só minha, sentia até certa suavidade em conviver assim com a minha morta… Nota que já não digo: a nossa! Mas agora, agora que a inimiga, a intrusa, me rouba também o amor da minha neta, sinto dentro de mim um clamor de choro que não posso sufocar, por mais que me esforce! Sou uma abandonada.– Glória adora-te como sempre…– Foge-me… esquiva-se… acha a minha companhia monótona… A outra conta-lhe histórias, mostra-lhe gravuras, saracoteia-se com ela pelas ruas, até já a surpreendi pulando na corda com a menina, como se fossem duas colegas da mesma idade! As crianças gostam de alegria. É natural que a minha Glória a prefira a mim! Tenho ciúmes dela, sim, tenho muitos ciúmes… E ainda queres que a poupe e que me deixe roubar sem um protesto. Nunca!– Consulta um médico… a tua excitação é doentia…– Já me tardava! Um médico, e água de flor de laranjeira! A outra também te conquistou a ti. Se te mandar dançar sobre a sepultura de Maria… tu dançarás?– Talvez!– Ainda o confessas!– Mas, filha, que queres que eu faça?! Tenho pena de ti, mas não te posso dar razão. Quiseste vir, vim. Consome-me o sacrifício. Faze o que entenderes, contanto que voltemos depressa para a chácara. Consente, porém, que eu lamente a outra, como tu lhe chamas, e que a ache digna de maiores considerações. Agora deixa-me prevenir-te de que o Argemiro se cansou do desterro e volta amanhã.– Escreveu-te?– Telegrafou a d. Alice, pedindo-lhe que mandasse o Feliciano esperá-lo à Central.– Ora vê tu! Telegrafou à outra, em vez de o fazer a ti, como era natural. Queres mais claro?!– Eu sou hóspede. É ela quem põe e dispõe aqui.– É a dona da casa!– Tal qual.– E achas isso tolerável?– Perfeitamente. É paga para isso.– Ele deve chegar?…– Amanhã, às oito da manhã!…– São?…– Três horas da tarde.– Tão pouco tempo!– Achas pouco?! Repara que há um mês e dois dias que ele partiu; e para quem conhece os hábitos do Argemiro, faz espantar tamanha demora…– Fugiu de nós… – Já pensei nisso…– E eu que o amava como filho!– E ainda lhe queres muito bem.– Não…– Lembras-te de ser sogra, quando já não o és…– Sou.– Em vida de Maria o teu genro era para ti um deus!– Porque fazia a sua felicidade. Mas agora traiu-a… Vamos lá para baixo. Onde estará Glória metida? Amanhã… ele volta amanhã… e eu tenho sido tão cobarde… não sei o que me dá, quando vejo aquela mulher! Delambida. E embaixo daquela pele macia ela tem uma alma de ferro. É dura.– O Argemiro não há de gostar quando souber que nunca a admitimos à nossa mesa…– Ela ia à dele porventura?– É diferente.– Ora…– Também não lhe agradará a confiança exagerada que dás ao Feliciano…– É cria de casa…– É um velhaco.– Também te desagrada?– Completamente.– Pobre rapaz… Prouvera a Deus que a outra fosse tão sincera… O barão limitou-se a sorrir, com escárnio e tristeza.Desceram.A baronesa gritou:– Feliciano! Onde está minha

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A Intrusa | Capítulo XVII

CAPÍTULO XVII A praia de Botafogo regorgitava; era dia de regatas. Por todo o cais o povo apinhado olhava para o mar coalhado de barcas, palpitante de luz. Nas arquibancadas, à beira de água, as toaletes claras das moças despertavam a idéia de grandes flores variegadas, desabrochadas ao sol, e, na rua, carros e bondes arrastavam-se cheios, vagarosos, por entre a multidão. Mas a beleza era o mar, cuja superfície apenas enrugada de um azul violento, toda se paletava de escaminhas de ouro. Andavam pelo terceiro páreo. Baleeiras velozes, bem remadas, demandavam as balizas na ânsia da vitória; outras, em repouso, deixavam-se balouçar pela água, molemente, enquanto lá no alto as gaivotas espalmavam as asas tranqüilamente.– Belos rapazes! – observou Adolfo Caldas, olhando com entusiasmo para a tripulação das baleeiras.Armindo Teles acenou com a cabeça que sim, e chupou com mais força e maior satisfação o seu havana.Caldas continuava à meia voz:– Contempla aquele bíceps e cora! Homem da cidade, da manhosa política e das sobrecasacas bem feitas, não te envergonhas dos teus braços diante daqueles?…– Se eu discutisse a murros…– Quanto mais vigoroso é o braço, mais franca é a língua!… Digo-te por mim, que as minhas banhas sentem-se humilhadas, ofendidas, por aqueles músculos. A nossa raça salva-se. Ainda bem para os pais de família… Vê o modo enérgico e bem ritmado por que os remos desta baleeira vêm golpeando a água…Teles soprou a baforada do seu charuto aromático, e respondeu:– Prefiro olhar para o pavilhão e as arquibancadas… Se os rapazes são fortes, as mulheres são bonitas, e eu guardo para elas, em todos os tempos e lugares, a minha predileção. Hum! Isto hoje está chique… Se as galerias da Câmara tivessem esta sociedade… Eu falaria todos os dias!…– Vês que as mulheres dão mais apreço ao músculo que ao verbo… Empresta-me o binóculo.Dança-se nas barcas…– D. Maria Helena está no pavilhão… Também lá estão as Tavares… A Chiquita Maia… A Pedrosa e a filha. Precisamos cumprimentá-las.– Depois… Deixa-me beber saúde pelos olhos. Faze outro tanto, que precisamos ambos de lavar a alma…– Chegou agora a Joaninha Mendes…– E ela? – indagou Adolfo sem desassestar o binóculo da barca, onde se dançava.– Ainda a não vi… Mas há de vir!– Lá passam os vermelhos a dianteira!– Não… Por enquanto ainda são os azuis…– Os demônios têm força… Agora!– Bravo!– Viva!– Bravo! – gritaram muitas vozes a um tempo, numa explosão de entusiasmo. Ao lado deles um moço gordo berrava, agitando o chapéu. Teles sacudiu a cinza do charuto da lapela da sua sobrecasaca avelã, onde sorria a graça de uma orquídea lilás, e voltou-se todo para o pavilhão.Sinhá debruçava-se no pavilhão do júri, com as faces afogueadas e o olhar chamejante. A seu lado, a mãe lambiscava bombons e as Moreiras, do Catete, sacudiam os lenços com frenesi: – É o Boqueirão!– É o Flamengo!– Não…– É!– Bravo!– Bravo!Os nomes dos clubes andavam no ar, como as gaivotas. Afinal, um deles ganhou o páreo.Rompeu a música e a baleeira vitoriosa veio receber as saudações, que rebentavam em palmas por todo o cais, como uma onda. Ao passar pelo pavilhão, Sinhá, toda debruçada, vermelha como uma rosa, atirou-lhe o seu ramo de violetas. Aparou-o no ar um rapaz loiro, batido de sol, de rija musculatura e olhos brilhantes. Trocaram um sorriso luminoso.– A mocidade!… A mocidade! É isto… Um aroma que atravessa o espaço… Um relâmpago que ilumina a vida, para deixar saudades… Este sim! – comentava Caldas consigo, lembrando-se do Argemiro ; e concluiu: – Agora a Sinhá escolheu bem… Isto é, não escolheu, achou. Aquilo é amor! E, dirigindo-se ao Teles: – Vamos agora cumprimentar as senhoras, com escala pelo bufê. Estou com sede.O deputado acariciava o queixo nu com a mão gorducha, em que rutilava um rubi. Seus olhos vivos, de pestanas curtas, furavam por entre cabeças e ombros, à busca de alguém.À roda comentavam o páreo. Havia descontentes; moças indignadas, outras quase chorosas, rapazes amuados. Tinham perdido. Mas outros e outras gesticulavam com alegria por aquele triunfo, que dava mais uma medalha ao clube da sua simpatia.Falava-se alto nas arquibancadas. Os sons da banda de marinheiros no Toureiro da Carmen não permitiam segredos.Em toda a linha do cais os guarda-sóis de cores diferentes, lembravam uma vegetação movediça de cogumelos fantásticos, desde os pequeninos, das crianças que assistiam à festa sentadas no paredão, com o olhar estúpido para o quadro policromo, até os grandes, protetores de velhos prudentes e amigos da sombra.Corria uma aragem forte. Agitavam-se no ar os galhardetes vistosos e as bambinelas do pavilhão central, como a acenar a toda a gente que fosse para ali, gozar aquele quadro de luz!O deputado impacientava-se. Adolfo parecia grudado ao bufê, comendo sanduíches e bebericando cerveja, no meio de um grupo de remadores muito adulados pela admiração dos outros. Trocavam-se brindes apressados; e na alegria, até um velhote pálido e encartolado trauteava a Carmen, acompanhando as sonoridades da banda.O intervalo acabava-se. Ouviu-se o estampido do sinal de partida. Voltaram-se para o mar.– Lá vem ela! – exclamou Teles à meia voz, sobressaltado.– Um ibisco! – observou Adolfo, olhando para uma lancha que se aproximava do cais.O ibisco era a madame Senra, toda de escarlate, com os bandós dourados rebrilhando sob as papoulas do chapéu. Ela agitava a sombrinha vermelha,rindo-se para o Teles, que se precipitou alvoroçado e inconveniente para a receber no desembarque, sem atenção aos bigodes retorcidos do Senra e à escolta de moças que a acompanhavam.Caldas imaginou:“O patife do Teles vai passar uma hora feliz, uma hora ligeira, dessas que suspendem a vida!Por que será que as mulheres bonitas dão geralmente preferência aos banais? Esta é linda. Uma flor!… Sempre que a vejo sinto os meus pensamentos transformarem-se em abelhas… ela mesma deve sentir-se como que nimbada por um adejo de asas… volúpia dos olhos, tentados pela sua graça… Não se me dava!… Que lhe dirá o idiota do Teles? Sua Excelência alcançará ali o que não alcança na Câmara: chegar ao fim?… Pois

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A Intrusa | Capítulo XVI

Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade…As janelas de guilhotina, dos compartimentos superiores, viviam escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho infinito…Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por um casal de surdos- mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido, por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio, e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por aquele caminho de sacrifício.Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio do temporal.De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação, vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!E ei-lo um concentrado… um padre! Fora o colégio dos padres que lhe inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa, se o efeito ali estava e irremediável!Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso e a jovialidade dos netos!E o filho, desigual no humor, ora tímido, ora arrebatado, cresceu sob a sugestão desse sonho. O que lhe valia a ela era a amizade do Argemiro, que, mais velho um ano que o amigo, lá o entretinha com as alegrias do seu temperamento robusto. Eram vizinhos, estudavam no mesmo colégio, amavam os mesmos poetas, completavam-se pelas suas semelhanças e dessemelhanças.A amizade de Argemiro foi um alívio para d. Sofia. Bem percebia ela não bastar à felicidade do filho!Os dois rapazes viviam como irmãos!Passaram-se anos assim, até que um dia entraram ambos em casa, um radiante, outro constrangido. Que se passara? não o soube nunca; mas por mal dela o constrangido era o filho, que entrou a empalidecer… a não dormir… enquanto o outro prosperava! – Meu filho! que tens?– Nada…– Escondes-me alguma coisa!– Nada…– Quero-te alegre!– Mas eu estou alegre… acredite que estou alegre e que sou feliz. Era sempre o que ele afirmava.“Ele mente-me!” – pensava a mãe amargurada. E a sua obra, a alegria, a ambição de glórias que, durante tantos anos se esforçara por implantar no filho, sumia-se, derrocava-se, sem que lhe fosse possível, a ela, ampará-la para a reconstruir!– Ele mente-me…Ela queria-o franco, risonho, amigo da vida. Ele retraía-se, tomava ares abstratos, entregava-se a leituras filosóficas e a estudos incompatíveis com a sua idade. Ela não entendia bem daquilo, mas pressentia um perigo sem forças para o combater…– Ele mente-me…Era a sua amargura. O filho tornara-se de uma sensibilidade doentia; fugia da sociedade, evitava a própria mãe, que se encolhia chorosa, para o não aborrecer.Aos vinte e três anos viu-o morto com uma febre. E aos vinte e cinco – padre!Não o quis contrariar, não se podia opor. Ele lá teria uma razão diferente daquela que alegava e que ela espiara em vão!Não fora chamado por Deus ao sacerdócio, fora levado por uma causa estranha, mas inabalável.Sonhar! de que vale o sonho que não frutifica, flor que se esfolha e de que nem o aroma sequer permanece com suave consolação!Ela sacrificara-se para tornar aquele filho um vencedor, um homem! e ei-lo místico, retraído, isolado do mundo para que o destinara!Ela pedira-lhe uma nora, ele trouxera-lhe uma batina, e à sua indagação angustiosa:– Meu filho, que tens?!Respondia ainda:– Nada. Eu estou contente… Eu sou feliz!“Mente-me!” – pensava ela consigo, disfarçando as lágrimas.O que lhe valia era a amizade do Argemiro. Esse, sim, era um rapaz sólido, prático como ela desejara o seu…Ah, não se podia esquecer nunca! No dia em que Assunção, pálido e trêmulo, lhe confiara a resolução de ser padre, ela levantara para ele a mão, como no tempo de criança, em que se via forçada a corrigi-lo… Ele estendera-lhe a face, como Cristo; ela retraíra-se, desatando num pranto soluçado.Negava o seu consentimento; não queria! O homem não nasce para o celibato, mas para a família; a missão ensinada por Deus é a do criador! – afirmava.E toda aflita:– Mas, que determinou semelhante idéia, meu filho?– A vocação…– Não… não! Tens algum desgosto

A Intrusa | Capítulo XVI Read More »

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