A Intrusa

A Intrusa | Capítulo XV

Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de contentamento. Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos, esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro, aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas que alegravam a mesa.“Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa…” – pensava ele consigo. “Uma toalha bem limpa… umas flores orvalhadas… esmaltes de louças reluzindo… e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador… Amanhã, as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar…”– Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com certeza alguma alma do purgatório…– Talvez… mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra… Por toda a vastidão do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais… Eu tocava músicas solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se tornaria um dia possível tal ventura… Por que hão de vir tão tarde semelhantes sonhos?!– Para que se não realizem.– É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda… A arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula para as minhas febres…– Escreve…– A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago fechado à chave…– Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!– Nunca pensaste, por quê?!– Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.– Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução! – Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo… Ele será o meu confessor! – Tudo isso vai longe…– Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem… No meu sonho, esta madrugada, reviveram essas comoções… As imagens da catedral, todas de mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas que amei na minha adolescência e na minha mocidade… As melodias gloriosas que eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas, ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras… Não eram só vozes humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do seminário… o badalar do sino para a minha primeira missa… e o rugido das sedas de tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão… Nunca me esqueci… foi como um ruflar de asas… Pois a minha alma transportava essas impressões em largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas os homens mais felizes da Terra?– Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar… Quem sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa…– Pouco mais Que é isso?!– Nada…Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.– Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto na boca?– Nunca, respondeu o padre.– Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a copa. Assunção argumentou:– Está nas tuas mãos o remédio.– Despedi-lo?– Pois então?– Acabo por fazer isso mesmo. Realmente, não há nada como a ignorância para certa gente. Meu sogro fez de um moleque humilde, um homem ruim… Se em vez de o mandar para a escola, com bolsa a tiracolo e sapatinhos de botões, o deixassem na modéstia da cozinha ou da estrebaria, ele não teria agora nem a revolta da sua cor nem a da sua posição… O que o torna mau é a inveja e a sua ignorância mal desbastada.– Ele não é tão mau assim!– Defende-o agora!O Feliciano voltou com a sobremesa, um doce novo, desconhecido de ambos e que o copeiro não teve remédio senão confessar ter sido preparado por d. Alice, receoso de que ela o ouvisse por detrás das portas.Depois do café, ao entrarem os dois sozinhos para a biblioteca, Argemiro notou:– Foi o meu último dia de bem-estar. Reparaste? Nada faltou. É uma alegria, uma casa assim! E rara, eu sei, nas minhas condições, raríssima! Perfeita, a minha governanta! Se tem defeitos, nunca os deixa transparecer… Nem é possível que os tenha…– Estás doido! Ela é uma mulher como muitas; somente cuidadosa de não perder um emprego bem remunerado; mais nada.– A esta acusas!– Não. Esclareço-te. Jogaste uma cartada, foste feliz, dá-te por bem pago por estes largos meses de tranqüilidade. Supondo que tua sogra se incompatibilize com a d. Alice, acharás depois outra governanta nas mesmas condições. Esta é

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A Intrusa | Capítulo XIV

A baronesa não recebera ainda a carta anunciada pela cartomante e andava inquieta, doente. Glória voltava radiante todas as segundas-feiras das visitas paternas e não tinha na boca senão o nome de d. Alice.Aquilo fazia recrudescer o desespero da pobre senhora.– D. Alice! d. Alice! não falas senão da tal d. Alice! que personagem!– Eu gosto dela…Prendendo as mãos da neta, puxando-a para si, a avó perguntava entre suplicante e imperativa:– Mas que te faz essa mulher para lhe quereres assim?– Nada… passeia comigo… conversa…– Tenho medo dessas conversas… É a tal história dos sapatinhos de ferro!– Da vaquinha Victória?– Sim… Que te diz ela?– Tantas coisas… Ontem fomos ao Jardim Zoológico. Vovó há de crer? Ela contou-me a vida daqueles bichos todos!– Mentiras… Que pode ela saber!– Eu contei a papai e ele afirmou que era verdade!– Ah! tu contas a teu pai tudo que ela te diz? Bem disse eu! É a tal história dos sapatinhos de ferro… Um dia há de enterrar-te como a madrasta fez à outra.– Mas ela não é minha madrasta! Nem diz nada de mal… Vovó pergunte só ao padre Assunção.Ele também gosta de conversar com ela. Ontem estavam muito tristes…– Ambos?!– Ambos.A baronesa riu-se.– De que se ri, vovó?– De nada… achei graça! Ia bem vestida a tua d. Alice?– Assim… assim… ela anda quase sempre com o mesmo vestido, quando sai. É pobre…– Ela usa anéis?… tem alguma jóia?…A neta admirou-se de ver a avó tão corada de repente; e, antes de responder à pergunta, exclamou:– Nunca vi vovó tão vermelha! – e depois, naturalmente: – Não usa anéis… também não usa jóias.– Nunca te falou da família?…– Nunca… Papai me recomendou que eu nunca lhe perguntasse por isso!– Ah! teu pai recomendou!… – Por que seria, vovó?– Porque geralmente mulheres assim não têm família.– Coitadas! Mas assim como? D. Alice é como as outras!– Talvez mais bonita…– Não… Ontem então ela estava com os olhos tão pisados!– Pobre infeliz!– Eu queria que vovó gostasse dela!– Para quê? Estamos muito bem assim… Cada um no seu lugar!– Já tenho aprendido muita coisa com ela…– Deus queira que não aprendas tudo!– Papai gosta que ela me ensine!– Ah…– Padre Assunção também… Ele ontem assistiu à minha primeira lição de desenho. Uma lição só por semana é pouco… Vovó deixa d. Alice vir cá de vez em quando dar-me outra lição?– Nunca!Glória recuou espantada; a velha conteve-se, e depois:– Os retratos de tua mãe ainda estão nos mesmos lugares?– Estão… um em cima do piano… outro no escritório… outro no quarto de papai…– Já tiraram o do quarto de toalete?!– Ah! é verdade! e outro no quarto de toalete! Como vovó se lembra!– Minha pobre filha!– O do quarto do papai está ficando branco…– Até desaparecer! É que a imagem de Maria está sumindo ao mesmo tempo da memória e do papel! – disse a baronesa abafando um suspiro.– Da memória de quem?!– Vai brincar, minha Glória; corre, faze das tuas brutalidades antigas… quero ouvir os teus gritos, as tuas risadas… Onde está a tua cabrinha? Já nem fazes caso dela!– Como não?! D. Alice até me prometeu uma coleira para ela!– Já me tardava…As mãos da avó afrouxaram. Glória fugiu para o quintal.– Está tudo acabado! Venceu e domina a todos. Glória, a filha da minha filha, talvez já ame à outra mais do que a mim!… Tem trabalhado, a maldita… e não há quem defenda a minha pobre Maria! Nem o Assunção… ninguém!…A baronesa revia a cena, que não lhe saía diante dos olhos: Maria, recostada nos almofadões da cama, muito diáfana, com os cabelos louros espalhados sobre os ombros magros e os olhos engrandecidos, circulados de violeta… À sua cabeceira, em pé, o padre Assunção, lívido, com os olhos velados por uma expressão de agonia dominada. Argemiro, de joelhos ao lado da moribunda; ela aos pés da cama, de mãos postas, olhando, na insensata esperança do milagre!Na sua alma ecoava ainda a vozinha da filha:– Jura, Argemirao, que não te tornarás a casar…– Juro!– Jura que viverei sempre no teu coração!– Juro!A voz dela era como um sopro; a dele, formidável!Maria morreu sorrindo, com os dedos embaraçados nos cabelos do esposo… Não falara na filha… não olhara para a mãe. Fora toda dele… e ele repelia aquela imagem angelical, para substituí- la pela de uma mercenária! Aquela amaldiçoada. Como expulsá-la dali?! Não estaria perdendo muito tempo?… Uma tarde, o Feliciano procurou-a; e ao relatar-lhe a sua espionagem ela mandou-o calar-se.Não queria saber de nada por esse modo. Que se fosse embora!O negro não pôde reprimir um movimento de espanto. Não fora ela que o impelira àquilo? Fora, mas em um momento de desânimo e de fraqueza. Envergonhara-se. Readquiria a calma;estava feito o seu plano. O negro foi despedido sem explicações e com a proibição de acompanhar a moça.Feliciano saiu murcho, maldizendo as mulheres.A baronesa dirigiu os seus passos pesados de mulher gorda para o escritório do marido, que se entretinha na coleção do seu herbário.– 325… – murmurava o barão, olhando para as suas listas; e depois:– Que temos? – perguntou ele sem levantar a cabeça, mas percebendo no ar qualquer novidade.– Que tomei uma deliberação.– Qual?…– Ir morar com Argemiro.– Hein?– Ir morar com Argemiro.– Ora essa!O barão tirou os óculos e olhava agora de face para a mulher.– Que idéia!– Como outra qualquer… meu velho…– Qual! nós não podemos viver na cidade!– Por que não?– Por quê?… por tudo! Tu gostas desta liberdade… há trinta anos que te enterraste aqui e que daqui não tens querido sair para nada… eu, ao princípio, confesso, fazia sacrifício; hoje não. Olha para esta mesa: vês? estou catalogando as minhas plantas… plantadas aqui na minha chácara e tratadas só por mim!…– Virás à chácara de vez em quando.– Estás doida!– Nunca o estive menos!– No tempo em que Maria era viva nunca pensaste nisso, e então agora… Ora adeus!– No tempo de Maria eu não era lá precisa para nada; e

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A Intrusa | Capítulo XIII

A noite estava escura. Alice levantou a gola do casaco e, puxando o véuzinho até a queixo, desatou a andar em direção ao largo do Machado, sem paciência de esperar o bonde à porta de casa.Atrás dela, à curta distância, Feliciano não lhe tirava os olhos de cima, cosendo às paredes o seu corpo esguio. A sombra, protetora de segredos, confundia-se com a cor do seu rosto, esvaindo- lhe a imagem. Os tacões da moça batiam na calçada em pancadinhas miúdas e sonoras; os dele dir- se-iam forrados de veludo. A espionagem tem asas de morcego, teme a luz, mas espalma-se na treva sem rumor nem receio. Seu elemento é o mistério. O desejo do mal é silencioso. Oh, se ele pudesse estender as unhas afiadas e fazer sangrar na escuridão a carne branca daquela mulher!Não fora ela quem o desprestigiara diante dos outros que ele dominara antigamente como senhor? Todas as suas fraquezas, os seus crimezinhos de infidelidade não tinham sido farejados e descobertos por essa criatura imperativa e doce a um tempo? Nem uma palavra lhe saíra dos lábios, mas a verdade salta pelos olhos quando a não deixam sair pela boca.Ela sabia tudo. Tratava-o como um inferior, uma máquina de serviço, sempre necessitada de direção. Não fora para isso que ele aprendera a ler na mesma cartilha da sua antiga iaiá!Revoltado contra a natureza que o fizera negro, odiava o branco com o ódio da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. Um ente misericordioso não deveria ter feito de dois homens iguais dois seres dessemelhantes!Ah, se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo lento, ou a afiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com alegria. Mas a abominação era irremediável. O interminável cilício duraria até que, no fundo da cova, o verme pusesse a nu a sua ossada branca…Branca! Era a mulher branca que ele preferia, desprezando com asco as da sua raça.A superioridade daquela que ia toc-toc na sua frente exasperava-o. O seu humor inalterável, os seus hábitos de asseio e de ordem não lhe tinham dado ensejo para a intriguinha fácil e perturbadora. Chegara o dia de castigar a afronta daquela branca intrometida, que ele odiava, e ardia por esmagar com a divulgação de algum segredo que a comprometesse. Desprezava o ardil pela verdade; mas, se esta lhe escapasse, então recorria a tudo, até ao feitiço de algum velho parceiro africano.Mas desse recurso extremo só lançaria mão quando não pudesse contar com os da sua inteligência e malignidade.Tinha ainda na memória uma sentença materna: “quem faz feitiço morre de feitiço”, e essa idéia afligia-o. A mãe era filha de mina. Devia saber… aquela branca pobre e presunçosa, que era mais do que ele na ordem das coisas, para o tratar assim por cima do ombro, com um arzinho supe- rior de patroa fidalga?– Ela há de me pagar!O que ele queria agora era saber bem da sua vida, penetrar no mistério daquela existência flutuante, sem raízes conhecidas; assenhorear-se de um segredo que a tornasse escrava da sua vontade poderosa.Como aos de Adolfo Caldas, ela também representava aos seus olhos o encardido papel de especuladora. Não era outra coisa; mas a intrusa teria o seu castigo, zurzido com mão de ferro, na hora marcada pela sua justiça.O arrependimento entraria, então, no coração de Argemiro.O bonde tardava e Alice não diminuía o ritmo dos passos. Antes assim; ele gostava de ir andando a pé, atrás daquela figurinha nervosa e fugidia.Quem tanto se apressa, corre para a felicidade, que para o aborrecimento o passo é tardo.Pensava o negro: “Ela vai para alguma entrevista de amor…”Isso contrariava-o… e crescia-lhe com essa idéia a raiva pela usurpadora dos seus regalados descansos e da sua autoridade de chefe!Ela matara o seu prestígio. Viesse quem viesse depois dela, encontraria lançada na casa a semente da desconfiança. Fora um dia o Feliciano, que lia jornais nas cadeiras do amo, com deliciosos charutos entalados entre os beiços.Um bonde! E o bonde parou a um gesto de Alice, que subiu para um dos bancos da frente, aconchegando com um arrepio o casaco cor de mel ao corpo friorento.Feliciano, em pé na plataforma, não a perdia de vista.No largo do Machado ela desceu e, passando pela frente da igreja, tomou a direção da rua Bento Lisboa.O negro, a pequena distância, ia atrás dela, dando graças ao vento que fazia ulular o arvoredo da praça, abafando outros rumores. Na rua Bento Lisboa, Alice acelerou a marcha. Parecia levada por um grande desejo. Feliciano espiava-a aflito, numa ansiedade!A sua admiração era não ver aparecer um homem, a quem ela desse o braço, que a comprometesse e o ajudasse na intriga… De resto, ele não queria crer, queria denunciar!De repente estacou; a moça sumira-se na portinha negra de uma casa antiga, meio arruinada.Feliciano passou, tornou a voltar, sondou com olhar atrevido o corredor escuro, procurou ver se estaria alguém a quem pudesse fazer qualquer pergunta na vizinhança, encostou-se a um umbral fronteiro e esperou, indignado, contra aquelas paredes, que um murro de homem deitaria abaixo e que lhe escondiam o mistério desejado!O vento e o pó obrigavam os moradores do lugar à reclusão. As janelas fechadas estristeciam a rua ordinariamente animada. Que se passaria lá dentro?Feliciano esteve uma ou duas horas à espera, como um vigia cuidadoso, firme no seu posto.Nem uma réstia, um tênue fio de luz vinha cortar a treva daquela fachada muda!O negro tinha ímpetos de ir encostar o ouvido às janelas ou penetrar no corredor, cansado de esperar, numa impaciência que o adoecia.Eram quase dez horas quando ouviu rumor de vozes e reconheceu a de Alice. Depois a moça reapareceu, puxando a porta sobre si.A casa, impenetrável, guardava o seu segredo. Alice deslizava na sombra com o mesmo passo apressado. Dir-se-ia que igual desejo a levava ao ponto de onde partira três horas antes!Desnorteado, Feliciano hesitava se deveria acompanhar Alice, cujo destino conhecia, se ficar mais alguns instantes esperando alguém que porventura saísse daquela

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A Intrusa | Capítulo XII

“Bem dizem os romancistas que os romances se fazem por si. Criada a personagem, posta no meio em que terá de agir, ela caminhará por seus pés até o ponto final do último capítulo.Acontece, por isso, que o autor tem, às vezes, verdadeiras surpresas, como se todos os atos dos seus heróis não fossem obra sua! Concebida a idéia fundamental do livro, está criado o sopro de vida que o animará. A dificuldade está toda no primeiro impulso! Hei de sempre lembrar-me de uma noite em que fui encontrar o Tadeu, pálido, passeando agitadíssimo pelo escritório, com um verdadeiro ar de fúria.– Que tens tu?! – perguntei-lhe assustado, de entre portas.Voltou para mim os olhos esgazeados e disse, com uma sinceridade comovedora:– Tenho que o patife do Brás apaixonou-se por tal forma pela Delfina, que não sei como hei de casá-lo com a Lucinda! – e apontava com o dedo colérico para as folhas esparsas do seu romance, desordenadas por um vento de insubmissão. O caso era grave. Entrei, sentei-me e fiquei calado, assistindo ao duelo fantástico de um romancista com a sua personagem revoltada.Por fim, aventurei timidamente, querendo valer àquela aflição:– Por que não casas essa tal Lucinda com outro? que diabo!– Com outro?! estás doido! Ela adora o Brás e não pode absolutamente casar com outro. Seria um desastre! Com o Brás é que ela há de casar, quer ele queira, quer não queira!O desespero do romancista era tão evidente e profundo, que eu não ri. Fiquei desde então convencido de que a ficção, como a realidade, obedece a leis de imprevisto e de fatalidade. Li depois o romance… O Brás não casou com a Lucinda. Porque não quis, está claro!”Adolfo, acabando de dizer estas palavras, soltou uma baforada de fumo, afundou mais o corpo na larga poltrona do Argemiro e suspirou:– Está-se bem aqui!– Não achas? Pois essa poltrona amável estava encerrada no quarto dos badulaques por imprestável! Foi ela que a arrancou de lá, mandou-a ao estofador e pô-la aqui. E guerreiam uma mulher que me presta tais serviços!– Deixa guerrear… Na vida, como nos folhetins, os romances fazem-se por si… Vê tu o trabalho e os manejos da Pedrosa em que deram! Surpreendeu-me tanto o que disseste da filha, que estou quase apaixonado por ela… Palavra! nunca a supus capaz de uma cena tão fina. Parece do Tadeu.– E estava linda!– Demais a mais… – e depois de uma pausa: – A tua governanta é bonita? Disse-me a Pedrosa que não. Por isso infiro que sim.– Não sei…– Deixa-te de asneiras; sê franco.– Já te disse. – Ela leva o seu rigor até os teus amigos?– Parece. A não ser o Assunção…– Teria graça se o nosso Assunção atirava a batina às urtigas por amor da tua…– Cala-te, ímpio!– Estou calado! Mas é cada vez mais adorável, o Assunção! Para mim, ele tem lá dentro coisa oculta, obra de feitiçaria, que nem a minha sagacidade nem talvez a tua intimidade pode adivinhar… Não te parece?– Não. Nele há só o amor do céu… mais nada…– Estás seráfico! Pois tu acreditas que, hoje em dia, um homem válido se faça padre só por amor do céu? Qual, histórias! Eles escolhem a vida clerical como poderiam escolher outra qualquer acomodada ao seu egoísmo e à sua habilidade… Os inteligentes pensam tanto na vida eterna como eu ou tu, mas fazem nesta o que podem para chegarem a bispos… Tenho um medo deles que me pelo… O nosso Assunção é um exemplar único, faz-me lembrar um desses sacerdotes virtuosos dos romances anticlericais, com que o autor adula o sentimento dos leitores piegas… O que me agrada sobretudo no Assunção é que ele é mais amigo da humanidade que dos santos; e gasta-se mais em esmolas que em jejuns… Não vês o recato em que ele envolve as suas ações e as suas idéias? Anula a sua personalidade, como para dar vulto ao fato e pôr em toda a evidência a personalidade alheia… A palavra eu parece que lhe morre na garganta antes de lhe chegar à boca, e todavia ele é inteligente. Já me tenho servido da sua biblioteca; é opulenta em obras clássicas portuguesas. Se fosse escritor, seria um defensor da língua!– O valor do Assunção, para mim, que o conheço desde bem moço, está principalmente no coração. Ele é bom. Às vezes penso que ele estaria melhor num lugarejo qualquer do interior, ensinando crianças e animando a pobreza a suportar a vida, do que no Rio de Janeiro. Dizes bem. Ele não é lutador nem ambicioso; é um resignado e um meigo. se eu tivesse um irmão não lhe quereria mais. Entretanto, o Assunção nunca me confiou o seu segredo, que ele guardou sempre com tamanho recato que tive escrúpulo em interrogá-lo. Por que não havemos de acreditar na vocação? Ele sempre foi um místico. A mãe, uma senhora adorável, fez tudo para desviá-lo do sacerdócio, batalhou como uma heroína; mas ele dizia-se chamado por Deus, e Deus venceu a vontade materna. Fomos sempre amigos. Ele vivia com a sua ilusão, eu com o meu pecado; e com tão opostas idéias nunca ofendemos a nossa amizade. É verdade que ele me contagiou um pouco do seu sentimentalismo. É mais forte do que eu, que não lhe transmiti nem uma sombra da minha personalidade…– Não lhe conheceste nem uma paixão?– A dos livros, de que falaste há pouco; e essa mesma há alguns anos é que me dá a impressão de ser a tábua flutuante do seu naufrágio!– E tua filha?– Sim, ele adora minha filha!– Ora, pois, já tem com que se entreter. Dá-me outro charuto. São magníficos os teus charutos…Realmente, está-se bem aqui. Estou vai não vai a raptar-te a tua Alice!– Psiu! fala baixo…– Receias que ela esteja atrás da porta?– Quem sabe?…– Não duvides! Uma governanta de casa de um viúvo só, vinda por anúncio de jornal… deve ter ao menos um defeitozinho, e olha que o da curiosidade é quase virtuoso…

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A Intrusa | Capítulo XI

A casa do dr. Pedrosa era uma das mais antigas da rua Senador Vergueiro. À sua fachada, de velho estilo português, a vaidade do dono mandara adicionar uma cimalha, que encobria as telhas aldeãs com os seus floreados medalhões de estuque e dois torreões laterais, ligados ao corpo central por passadiços envidraçados, de caixilhos miúdos. Dentro de um vasto jardim, fechado por gradil prateado, essa residência ficava meio encoberta da rua por dois misericordiosos tamarineiros, altos e frondosíssimos.Num dos torreões fazia o senhor ministro o seu gabinete de trabalho. O outro, todo esteirado e guarnecido de caquemonos, era chamado em casa o “pavilhão japonês”, e destinado a Sinhá, que aí recebia as amigas e pintava as suas tímidas aquarelas.Era noite de recepção e a Pedrosa embarafustou pelo quarto da filha.– Estás pronta?– Sim, mamãe.– Que! de azul?! Não! muda de vestido. Branco, branco! Trouxe-te os meus brincos de pérolas.Toda de branco, só com estas duas pérolas nas orelhas, ficarás melhor. Como uma noiva…O olhar da mãe acariciava a filha, que sorriu com tristeza.A Pedrosa tornou a sair, recomendando pressa; ela ia para a sala esperar os amigos; antes de abrir a porta, puxou a filha a si e beijou-a com ternura.A moça começou passivamente a desenlaçar o seu vestido azul, pensando no ar misterioso com que a mãe a atraíra naquele beijo.Sem poder obedecer às ordens maternas, que lhe haviam imposto pressa, ela, mal enfiou o seu vestido branco, deixou-se cair sentada na beira do leito e ali ficou um largo espaço de tempo, com os olhos fixos no vácuo e os dedos embaraçados nas fitas desatadas do cinto.Tinha pensado muito desde aquele passeio ao Corcovado e começava a compreender o seu papel… A mãe oferecia-a ao Argemiro… era por causa dele que lhe pusera nas orelhas aquelas pérolas, que pareciam queimá-la… Por quê? Porque ele era rico e ocupava na sociedade um lugar brilhante… Amava-a ele? não!… amava-o ela? talvez…Na verdade, a imagem de Argemiro nunca se lhe apresentara senão levada pela mão da mãe… lembrava-se mesmo de que a primeira vez que o vira achara-o velho e triste… depois, a pouco e pouco, habituara-se a imaginar-se noiva daquele homem sério, que todo o mundo dizia votado inteiramente à sua viuvez… e agora ei-la enciumada de uma mulher de cuja existência até as vésperas nem suspeitara e que ocupava já o lugar que a mãe lhe destinava a ela!A figura de Alice desenhava-se inteira diante dos olhos pasmados da moça. Revia-lhe o rosto de um moreno pálido, de feições irregulares; o talhe esbelto do corpo, as mãos longas, o vestido cinzento, alegrado por uma gravatinha azul…Que idéia faria dela o Argemiro? Um leve rubor subiu-lhe às faces e ela escondeu o rosto entre as mãos geladas.A criada veio apressá-la. Sinhá levantou-se resolutamente e concluiu a sua toalete sem hesitação.Quando entrou na sala, a mãe, entre um grupo de amigas, conversava com um homem gordo, de longos bigodes cor de vinhático. Apresentou-a; era o encarregado de negócios de Inglaterra no Rio de Janeiro!Sinhá cumprimentou-o, admirada da habilidade da mãe; ela conseguira o seu desejo!Ali estava na sua sala o homem por quem ela subira inutilmente o Corcovado. Bem o dissera ela: realizo todos os meus empreeendimentos!Atendendo às visitas que rodeavam a mãe, Sinhá prestava atenção, a ver se distinguia a voz de Argemiro entre as vozes dos homens que palestravam no gabinete do pai. Aí, entre os livros de direito e de economia política, arrumados em estantes de canela ou espalhados sobre a secretária e a mesa, conversavam animadamente Adolfo Caldas, Argemiro, dr. Sebrão, o conselheiro Isaías e o dono da casa.– Falem-me de tudo! – exclamava o Pedrosa, súplice, – menos da política! Vocês não imaginam! não lhes direi que estou farto dela até os cabelos, porque sou careca; mas ultrapassa a minha força aturá-la até nos cavacos entre camaradas.Conselheiro Isaías, lembrando-se lá consigo do empenho do Pedrosa para alcançar a pasta, comentou do canto onde acolhera o seu corpinho murcho:– Percebe-se o sacrifício…Caldas levantou-se com estrondo, disfarçando a malícia do outro, e foi ao lampião reacender o charuto, enquanto Pedrosa continuava:– É muito grande, e só mesmo a pátria poderia exigir tanto de mim. A ação de governar vai se tornando cada vez mais perigosa nesta terra… Nós temos maus auxiliares e o povo tem má fé… A oposição agora serve-se de todos os meios para impedir-nos os passos, usando das armas mais pérfidas, que são as do ridículo e as da calúnia…– Essa senhora é velha como Sócrates… não faça caso… – disse o conselheiro.– Não faço caso, mas no fundo, francamente, desgosta-me. Trabalho sem interrupção e afinal…– Não faz nada! – disse o conselheiro, rindo.– Não seja perverso, amigo! ou declare-se já contra mim! Quem sabe se é você o autor daqueles versinhos que andam por aí carpindo a minha falta de eloqüência e de desinteresse, que julgam as qualidades primordiais para um homem de Estado!– E são…– Nego. Um político, do que precisa, sobretudo, é de tenacidade, sangue frio, patriotismo, sinceridade e um grande domínio sobre as suas paixões… além das qualidades superiores, que lhe são indispensáveis, de inteligência e de ilustração…– É por isso que o seu colega Marcondes está fazendo tão bonita figura!… – disse ainda o conselheiro, com um fundo suspiro. Riram-se todos, que bem conheciam os dotes fraquíssimos do Marcondes.Pedrosa continuou, com um sorrizinho magnânimo:– Ele é bem intencionado, e trabalha! Há dias em que nem tenho tempo de beijar minha filha… O homem público é um galé, principalmente neste nosso país, em que os mais puros devotamentos são sempre interpretados às avessas!– Muito bem! Apoiado! – exclamou o conselheiro, levantando-se.– Eu sei que você é um homem corajoso, desde aquela célebre caçada que fizemos juntos em Teresópolis… lembra-se? – perguntou, sorrindo, o dr. Sebrão ao Pedrosa.– E com bastantes saudades!– Quem tem idade e competência para arcar com o peso de uma pasta é ali o amigo Argemiro…– disse o conselheiro Isaías.Argemiro protestou; era um homem sem maleabilidade; não

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