A Intrusa | Capítulo XV
Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de contentamento. Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos, esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro, aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas que alegravam a mesa.“Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa…” – pensava ele consigo. “Uma toalha bem limpa… umas flores orvalhadas… esmaltes de louças reluzindo… e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador… Amanhã, as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar…”– Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com certeza alguma alma do purgatório…– Talvez… mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra… Por toda a vastidão do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais… Eu tocava músicas solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se tornaria um dia possível tal ventura… Por que hão de vir tão tarde semelhantes sonhos?!– Para que se não realizem.– É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda… A arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula para as minhas febres…– Escreve…– A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago fechado à chave…– Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!– Nunca pensaste, por quê?!– Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.– Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução! – Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo… Ele será o meu confessor! – Tudo isso vai longe…– Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem… No meu sonho, esta madrugada, reviveram essas comoções… As imagens da catedral, todas de mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas que amei na minha adolescência e na minha mocidade… As melodias gloriosas que eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas, ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras… Não eram só vozes humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do seminário… o badalar do sino para a minha primeira missa… e o rugido das sedas de tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão… Nunca me esqueci… foi como um ruflar de asas… Pois a minha alma transportava essas impressões em largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas os homens mais felizes da Terra?– Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar… Quem sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa…– Pouco mais Que é isso?!– Nada…Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.– Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto na boca?– Nunca, respondeu o padre.– Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a copa. Assunção argumentou:– Está nas tuas mãos o remédio.– Despedi-lo?– Pois então?– Acabo por fazer isso mesmo. Realmente, não há nada como a ignorância para certa gente. Meu sogro fez de um moleque humilde, um homem ruim… Se em vez de o mandar para a escola, com bolsa a tiracolo e sapatinhos de botões, o deixassem na modéstia da cozinha ou da estrebaria, ele não teria agora nem a revolta da sua cor nem a da sua posição… O que o torna mau é a inveja e a sua ignorância mal desbastada.– Ele não é tão mau assim!– Defende-o agora!O Feliciano voltou com a sobremesa, um doce novo, desconhecido de ambos e que o copeiro não teve remédio senão confessar ter sido preparado por d. Alice, receoso de que ela o ouvisse por detrás das portas.Depois do café, ao entrarem os dois sozinhos para a biblioteca, Argemiro notou:– Foi o meu último dia de bem-estar. Reparaste? Nada faltou. É uma alegria, uma casa assim! E rara, eu sei, nas minhas condições, raríssima! Perfeita, a minha governanta! Se tem defeitos, nunca os deixa transparecer… Nem é possível que os tenha…– Estás doido! Ela é uma mulher como muitas; somente cuidadosa de não perder um emprego bem remunerado; mais nada.– A esta acusas!– Não. Esclareço-te. Jogaste uma cartada, foste feliz, dá-te por bem pago por estes largos meses de tranqüilidade. Supondo que tua sogra se incompatibilize com a d. Alice, acharás depois outra governanta nas mesmas condições. Esta é
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