A Intrusa

A Intrusa | Capítulo X

Era uma fortuna cair o aniversário de Maria num domingo. Sempre era um dia roubado à companhia da outra. O consumidor ciúme trazia a baronesa doente, de uma tristeza sem remédio. Os beijos da neta sabiam-lhe a falsidade, os seus abraços, amolecidos, tinham perdido o ímpeto selvagem dos tempos de que a via ir fugindo tão depressa. Qualquer dia levá-la-iam de todo, sem que nem ela ao menos voltasse a cabeça para trás, para um último sorriso…Nem por ser exercitado no amor, o coração deixa de desvairar se o contrariam!Às vezes, para o desabafo, a queixa subia-lhe aos lábios descorados; mas o marido, inflexível, acudia logo, com a crua lei do destino:– Acostuma-te: mais tarde ela terá de acompanhar o marido, como a avó acompanhou o avô, e a mãe acompanhou o pai.E ela, então, gemia desconsolada:– Até lá, onde estarão os meus ossos! – como se a idéia da morte a tranqüilizasse.Se os pensamentos a atormentavam de dia, à noite perseguiam-na os sonhos. Alice, sempre a Alice, apresentava-se-lhe sob diversas formas, mas sempre com as mãos que nem garras.A insistência da idéia penetrava-a de crenças novas. Debateu-se em vão, concentrada no seu canto, com os olhos no retrato da filha, que o tempo ia desvanecendo num descolorido suave. Assim se atenuasse na sua alma a dor, como aquela sombra no papel! Por que há de haver coisas eternas na vida transitória? Já viu alguém refletir-se uma imagem com fixidez em águas de grande correnteza? A vida não faz outra coisa senão passar, e a dela então imobilizara-se num momento de horror? Uma noite, em sonhos, a filha apareceu-lhe lavada em pranto. Seus olhos, como dois ramos de miosótis inundados, vinham varados pela tristeza moça do amor. Não houve outra queixa. A mãe compreendeu-a. Era tempo de agir. Consultaria os espíritos, já que na terra não a ajudava ninguém.Lembrou-se de uma tal d. Alexandrina, da estação do Rocha. Contavam-se dela maravilhas, revelações estupendas!Preparou-se cedo. Vendo-a sair do quarto, de chapéu e de capa, o marido espantou-se, tão raramente ela punha os pés na rua.– Vou à missa pedir a Deus saúde e juízo para Glória. Ela faz anos hoje…– Sei…A baronesa não sabia mentir.Ao mesmo tempo que falava, as faces tingiam-se-lhe de vermelho. Mas o marido não deu por tal; e ela saiu. D. Alexandrina morava num sobradinho estreito, onde a baronesa entrou envergonhada. Fizeram-na esperar numa salinha de jantar atravancada por uma mesa coberta por um pano de aniagem, de franjas sujas, uns caixotes acolchoados, à guisa de divãs.Nas paredes, colados sobre os mandarins do papel desbotado, cromos de folhinhas e uma gravura representando o Marechal Floriano Peixoto. Depois de alguns minutos de espera, entrou d. Alexandrina, uma mulherzinha magra e morena, quase sem queixo, de olhos redondos.A baronesa entrou, seguindo-a, para uma alcova, onde ardia uma lamparina em frente a um oratório. Como na sala de jantar, havia ali profusão de imagens coladas às paredes; somente, estas eram apenas de santos. Uma cortina de chita corrida encobria um leito de que se viam somente os pés. Ao cheiro do óleo da lamparina juntava-se o de manjericão, num copo.D. Alexandrina retirou um baralho de cartas de uma gaveta, pousou-o sobre a mesinha redonda, junto à qual se sentaram e, pedindo com um gesto à baronesa que esperasse, voltou-se para o oratório e rezou baixo, com os olhos e o queixinho a tremer-lhe.Finda a reza, a cartomante pediu à baronesa que partisse o seu baralho, de grandes cartas, e começou a operação.– A senhora tem uma inimiga… A baronesa fez que sim com a cabeça.– É uma mulher má, que abusa da sua confiança…– Da minha confiança?!– Repito o que está nas cartas… A senhora tem a receber uma grande herança…– Não…– Sim… daqui a um ano… Mas deve mudar-se da casa em que está, antes que lhe suceda um desastre… A sua inimiga é moça, é bonita e é pertinaz; ela alcançará tudo que deseja, se a senhora não se atravessar no seu caminho… Ela finge amar seu marido, por cálculo…– Meu marido, não… meu genro! – retificou a baronesa, ofendida.– A carta… diz um cavalheiro que a interessa… cuidei que se tratasse de seu esposo. Será seu genro…– Pode saber-se quais são as suas intenções?– Ser amada por ele e explorá-lo.– Eu já desconfiava!…– Não se apoquente… ela será desmascarada a tempo… Não é livre… ama um rapaz pobre… com quem se encontra furtivamente… A senhora receberá uma carta…– Que mais?– O mais não digo; a senhora poderia ficar impressionada, sem vantagem… Seja prudente… queime a carta que receber… e esteja alerta… não convém intervir já… espere um pretexto, que não se fará esperar muito… a sua inimiga tem recursos…– Se tem!– E já conseguiu muita coisa… Recomende a seu genro cuidado, sobretudo com uns papéis lacrados que ele tem encerrados em um cofre!– Tenciona roubá-lo?!– Por hoje não lhe posso dizer mais nada – concluiu d. Alexandrina, cerrando os olhos.A baronesa saiu tonta. Era a primeira vez na sua vida que se abalançava para consultar uma adivinha. Envergonhava-se do seu ato; o marido censurá-la-ia… fora ali buscar um pouco do sossego e saía em maior confusão – aterrada!Fizera mal até então em não acreditar nas cartomantes: como pudera aquela adivinhar a existência da inimiga e as suas idéias perigosas? Mas, por que não lhe dera a ponta da meada, por onde ela pudesse desfazer toda a teia? Tinha que esperar uma carta e só depois dela lida e desfeita em cinzas teria de entrar em cena! Entretanto, a outra iria tomando inteira posse do coração de Argemiro, que ela queria só cheio do amor e da saudade da filha!Era por causa daquele coração que a sua doce Maria lhe aparecera banhada em lágrimas! Havia de lutar até restituí-lo à morta!O carro entrava agora na larga rua das mangueiras da chácara, quando a baronesa viu o Feliciano a pé, sobraçando um grande embrulho. Ela fez parar o carro e chamou o negro.– Feliciano! Bote esse embrulho aqui

A Intrusa | Capítulo X Read More »

A INTRUSA | Capítulo IX

A Pedrosa empenhava-se na conquista de Argemiro. Não contente de o convidar com insistência, arrebanhava-lhe os amigos para os seus jantares das sextas-feiras, em que a sedução rescendia até nos molhos de peixe. Adolfo Caldas, que se gabava aos íntimos de fazer os relatórios do ministro, traduzindo para português castiço a linguagem quebradiça do homem de Estado, não faltava nunca a essas reuniões; e o deputado Teles, governista, assistia aos banquetes com o desassombro de quem concorria poderosamente para a felicidade e o prestígio daquela casa.Argemiro, o mais solicitado, era incerto. Só o padre Assunção se esquivava sempre a essas honrarias, alegando que o seu sacerdócio o afastava de todos os gozos profanos. Para se aproximar também deste amigo, a Pedrosa não lhe faltava às suas missas das quartas-feiras, alegando devoção particular a S. José, patrono do marido, e oferecendo pela mão da filha esmolas gordas para os seus pobres.A esmola, vinda daqui, dali ou dacolá, mata da mesma maneira a fome. É dinheiro. Padre Assunção agradecia sinceramente. S. José que valesse àquelas almas interesseiras, que outras menos dignas iam à sombra do seu manto pecar na igreja, sem que do seu pecado resultasse algum bem para os necessitados…Que ambicionava, afinal, a Pedrosa? casar a filha com um homem de bem. Expor a menina àquele desfrute não era, por certo, ação digna de uma mulher criteriosa; mas a boa justiça encontraria para ela certa indulgência… Desgostavam-no mais as outras, que à sombra dos altares iam falar de amor, ali no interior sagrado da sua querida Matriz da Glória!Pensaria, por exemplo, a Eugênia Duarte, que ele, padre, via com bons olhos a sua assiduidade na igreja? Fora sua confessada, sabia-a casada, com filhos, um lar precisado da sua presença e do seu carinho…E lamentava os filhos dessa mãe, abandonados todos os dias, à hora exatamente de saltar do leito e da bênção maternal… Outra, cuja presença o inquietava ali, era Joaquininha Lobo, sempre com os pulsos cheios de rosários, sempre a dobrar-se em profundas reverências diante das imagens dos santos. Também essa fora sua confessada, e debandara como as outras, afligidas pelos seus conselhos e pelas suas admoestações… O marido desta vivia em viagens, como oficial de marinha; ela rabiava pelas igrejas, dando entrevistas entre padres-nossos, sempre envolvida em grandes obras de beneficência.Numa quarta-feira, saía o padre Assunção de dizer a sua missa, quando foi abordado no adro pela Pedrosa e a Sinhá, que o aguardavam com a competente esmola. Embaixo, junto aos degraus, esperava-as o coupé. O dia estava magnífico.– Reverendíssimo!– Minhas senhoras…– Acabamos de receber a sua bênção e viemos esperá-lo para darmos esta esmolinha aos seus pobres…– Meus ou dos outros, todos os pobres me merecem a mesma consideração. V.as Ex.as devem tê- los também…– Repele então o nosso oferecimento?! – perguntou a Pedrosa, desapontada.– Não tenho esse direito. Somente, se me permitirem… eu ensinarei a uma das minhas velhinhas o caminho da sua porta, e a esmola será, então, dada diretamente, mais agradável a ambas…– Isso não obsta… darei outra esmola à sua velhinha!A Pedrosa continuava de mão estendida; e como o padre não a aceitasse logo, ela disse, com a sua costumada vivacidade:– O sr. padre Assunção desconfia de nós!… não crê, por certo, na sinceridade da nossa simpatia.Tem sempre relutância em aceitar as nossas esmolas!– Engana-se, minha senhora, engana-se! Não posso recusar o que não é para mim!… Todavia, desculpem-me a teimosia, a pessoa a quem eu destinaria esse dinheiro procurá-las-á amanhã. Posso morrer de um momento para o outro… é bom que conheça as suas benfeitoras… – Morrer! Quem fala nisso, ainda tão moço! Ele sorriu com ironia, sem responder.– Diga-me, que fim levou o nosso amigo Argemiro? Não há quem o veja!… Não sei quem me disse tê-lo visto há dias com a filha… ela ainda mora com a avó?– Sim, minha senhora…– Então ele vive sozinho… absolutamente sozinho?…– Sozinho.– Que barbaridade!… Aquela ovelha está tresmalhada do seu rebanho… não lhe parece, padre Assunção?– Ao contrário, Argemiro, consagrando-se à saudade da sua mulher, está bem escudado contra os perigos do mundo… Mas, minhas senhoras, perdoem-me V.as Ex.as estar a entretê-las aqui, com este sol!– Ao contrário, eu…Mas o padre apressou-se no cumprimento e as duas senhoras não insistiram na conversa, percebendo que ele tinha uma preocupação qualquer.Ficaram as duas ainda alguns segundos no alto da escada, vendo a longa figura seca e angulosa do padre atravessando, a grandes pernadas, o jardim.– É um homem difícil de conquistar… já não sei quantas esmolas lhe temos dado, não sei quantos convites lhe temos feito… parece antipatizar conosco…– Se eu fosse a senhora não dava mais nada, nem o tornaria a convidar para ir lá a casa. Por ser padre não deve ser grosseiro…– É o melhor amigo de Argemiro… Compreendes que o não convido só pelos seus belos olhos.– Ah…A Pedrosa olhou para a filha com certo espanto.– Mamãe espera mais alguém?!A Pedrosa, por única resposta, começou a descer a escada e, ao entrar no coupé, gritou para o cocheiro:– Estação do Corcovado!Sinhá, sentando-se a seu lado, indagou curiosamente:– Vamos ao Corcovado, a esta hora! fazer o quê?– Almoçar…– Sozinhas? E o papai?– Teu pai não almoça hoje em casa.– Mas ele sabe?– Há de saber quando eu lhe disser.– E se ele não gostar?– Tolinha… vejo que não tenho outro remédio senão ir te dizendo já o que adiava para mais tarde. Não saíste a mim na perspicácia…Sinhá olhava para a mãe com uma linda expressão de estupidez.– A razão por que vamos almoçar às Paineiras não pode ser desagradável a teu pai. É esta: está lá em cima, no hotel, o encarregado dos negócios de Inglaterra. Fui-lhe apresentada há dias, rapidamente: convém fazer-me lembrada… Aquele homem pode ser muito útil a teu pai. Aparecendo lá, como por acaso, ele forçosamente virá cumprimentar-nos. Almoçaremos talvez à mesma mesa e terei ensejo de lhe repetir o oferecimento de nossa casa. É uma relação útil. A vida, minha filha, é como uma caixa vazia que

A INTRUSA | Capítulo IX Read More »

A Intrusa | Capítulo VIII

Provada a intriga do Feliciano, recomeçaram as visitas de Glória às Laranjeiras. A baronesa exigira segredo do que se passara, desejosa de que Argemiro conservasse em casa o criado, que já o fora da filha. De resto, ela estava intimamente convencida de que o negro não mentira, mas se enganara. Convinha-lhe tê-lo de guarda naquele lar em ruínas, como se à sua voz de alarme ela pudesse correr e ainda salvar alguma coisa!A verdade, que percebia sem a confessar, é que a neta lucrava muito na convivência de Alice.Ela perdia aos poucos aqueles modos agressivos de criança malcriada, começava a interessar-se pela vida e a abrir os livros com mais freqüência. E já não lhe bastavam as visitas curtas, do sábado para o domingo; desejava estendê-las agora até as segundas-feiras, cujas manhãs aproveitaria em passeios com a governanta do pai.A baronesa protestou indignada:– Mais essa! andar uma menina de boa família colada às saias encardidas de uma mulher suspeita, por essas ruas da cidade! Não faltava mais nada…Padre Assunção interveio:– Consinta na primeira experiência. D. Alice parece-me severa e digna de toda a confiança. Confesso-lhe que sinto uma certa curiosidade pela direção que ela vai dando aos gostos da nossa Maria… Prometo velar pela sua neta.– Ah! Padre Assunção, a República estragou a nossa terra! Agora qualquer criatura parece digna de toda a confiança… Quem nos dirá quais as intenções daquela criatura? Por mim tenho medo, apesar da sua vigilância…Glória zangou-se e fugia, aos repelões, dos braços da avó. Não haveria remédio senão ceder à vontade da criança, e a baronesa cedeu, molestada, enfraquecida.Na primeira segunda-feira o padre Assunção recebeu muito cedo uma cartinha da baronesa: “Glória está nas Laranjeiras; é hoje o dia determinado para o seu passeio. Confio-a à suaguarda; olhe por ela. – Luiza”.Assunção telegrafou a Alice. Esperá-la-ia no largo do Machado, às três horas.Logo que Maria deparou com o seu grande amigo sentado sozinho em frente à estátua, correu alegremente para ele e, afogueada, risonha, abraçou-o com força. Ele mal teve tempo de interrogá-la e já ela, revelando uma piedade até então oculta no mais fundo do seu peito, lhe contou o que vira, toda entusiasmada. Vinha do Instituto dos Surdos-Mudos.– Ah, padre Assunção, eu não sabia que havia gente assim, fechada dentro de si mesma, como me explicou d. Alice. Que desgraçados seriam se não houvesse aquela casa tão boa, onde eles conseguem aprender tudo, como os homens perfeitos! Como a gente tem vontade de ser boa, quando vê coisas dessas!E, trêmula, loquaz, desatou a descrever as aulas, as oficinas, os dormitórios do estabelecimento, e os grupos de alunos, risonhos, limpos, sossegados…Padre Assunção voltou-se para Alice, que, sentada a seu lado, riscava a areia do jardim com a ponteira do guarda-sol.– A senhora já foi preceptora?– Nunca…– Não podias ter empregado melhor o teu dia, minha Glória; agradece a d. Alice ter-te feito conhecer infelizes, cuja existência, como disseste, desconhecias… e que te despertaram tão bons sentimentos… Agora, vamo-nos embora, que a tua avó deve estar impaciente!Maria beijou Alice e ainda, depois, voltou-se da rua para lhe dizer adeus com a mão. Que diferença entre esta despedida e o seu primeiro encontro…Padre Assunção ia calado, meditativo. Que espécie singular de mulher era aquela, que, com tão alto senso de moral, se sujeitava ao papel de governanta da casa de um viúvo só? Humilhada em sua posição, maltratada por aquela menina orgulhosa, ela ia chamando habilidosamente a sua simpatia para os pobres e os infelizes. Seria por despeito ou por outro motivo mais maternal e em que a sua personalidade ofendida não tomasse parte? Fosse qual fosse a razão, a verdade é que aquela simples visita a um instituto do seu bairro valera por todos os sermões com que ele procurara abrandar o coração altivo de Glória. O tato sutil daquela mulher começava a encantá-lo; mas vinha-lhe medo de sugerir ao amigo essa impressão. Argemiro estava com o coração repousado, fácil lhe seria o apaixonar-se e o padre não se esqueceria, cem anos que vivesse, das últimas palavras trocadas por ele e a mulher moribunda:– Jura que te não tornarás a casar!– Juro.– Jura por Deus!– Juro pelo teu amor, juro por Deus!Fragilidade do coração humano, por que hás de ser agrilhoada por palavras de ferro que se não podem partir?!Toda a cena da morte de Maria se reproduzia na memória do padre, ali chamado para a última bênção. O som da voz dela ficara-lhe para sempre no ouvido, como nos olhos a sua imagem pálida… E não fora ele só a testemunha daquela terrível promessa: a mãe e o pai da moribunda ouviram com ele a voz de Argemiro, no inquebrantável juramento!As asas do tempo têm forte envergadura; não cansam de voar, mas levam às vezes consigo penas que se não mudam, embora fiquem disfarçadas entre outras que vão nascendo…Assunção sofria por não encontrar remédio para os males futuros, que via próximos. O seu papel estava feito por si, tinha de aceitá-lo, fazendo, como religioso, cumprir-se um juramento dito em nome de Deus. Mas o amigo? mas o homem? mas aquela pobre mulher sozinha? Deveria consentir que a guerreassem como a uma inimiga?Ele não era cego nem era surdo. A obra de Alice era de paz e de benefício. Fora ela que modificara as impetuosidades daquela criança, cuja vontade onipotente dobrava tudo e todos a seu bel-prazer.Seria isso um cálculo, uma impostura? Especularia ela, servindo-se da filha para entrar no domínio do pai? Afinal, que se sabia dela? Que pertencia a uma boa família descaída da fortuna e que passava por uma moça honesta…Em boas famílias quantos maus germes existem e quantas mulheres honestas maquinam tramas infernais! O confessionário ensinara-lhe que o bem e o mal nascem da mesma fonte sempre inconstante e fértil…A família… Seria certo o que a baronesa lhe insinuara? Dissera que uma récua de famintos ia tirar aos criados de Argemiro os pedaços que lhes competiam… A que horas? Como? Deveria também indagar disso?! Por que não, se esse era

A Intrusa | Capítulo VIII Read More »

A Intrusa | Capítulo VII

O domingo amanhecera de chuva; um bom dia para preguiça. Argemiro escreveu aos velhos desculpando-se por não ir vê-los e deliberou consagrar essa manhã aos papéis em desordem. Fora uma providência Glória não ter vindo.Com tão feio dia…A verdade, que ele sentia, que o penetrava por todos os poros, era que a sua casa nunca lhe soubera tão bem. Havia um conforto novo, um aroma de malva ou de pomar florido, melhor luz, melhor ar, por aqueles compartimentos que o Feliciano, quando sozinho, enchia do cheiro dos cigarros e dos charutos. Sempre era um fumante!Agora não; percebia-se que o ar daqueles quartos tinha sido renovado e o ambiente purificado pelas roseiras abundantes do jardim.Argemiro sentiu nessa manhã, pela primeira vez, uma certa curiosidade de ver Alice; mas não procurou pretexto para isso, certo de que, estando muitas horas em casa, forçosamente esbarraria com ela por acaso. Deixava pois, e de bom grado, a esse senhor a responsabilidade do encontro. Daí, a idéia moça trazia-lhe à lembrança umas pobres botinas cambadas…O seu gabinete reluzia de asseio, cheirava bem, não precisava de mais nada. Começou tranqüilamente a leitura dos jornais.Estava em meio de um artigo, quando o padre Assunção bateu à porta.– Então! Preguiçoso!– Entra. Como vês! Tens razão, preguiçoso! E nunca tanto como agora… absolve-me e senta-te.– Cá estou… bravo, como esta cadeira está bonita!…– Que cadeira? homem, é verdade… hás de crer? Ainda não tinha reparado… agora me lembro, ela tinha o estofo do espaldar esgarçado… Este lírio seria pintado por d. Alice?– Se te não pôs na conta do estofador…– Posso verificar já. Ontem à noite recebi uma caderneta com a nota das despesas do mês e… pasma, saldo a meu favor! Eu não dizia que o Feliciano era um abismo? Que diferença! basta olhar. Tu, que és mais observador, repara: está tudo luminoso, tudo límpido, tudo bem arranjadinho… hein? Há outra atmosfera nesta casa; estou melhor aqui do que em parte nenhuma, porque em tudo me parece haver o propósito de me ser agradável. Abre essa gaveta, e verás como está bem arranjadinha a minha roupa branca. Um primor! E o que me delicia é sentir a alma desta criatura, que aqui tenho debaixo do meu teto, sem que nunca os meus olhos a vejam nem de relance… Ela esconde-se, ao mesmo tempo que se espalha pela casa toda. É a mulher-violeta, positivamente, não há outra comparação! Esta será estafada em literatura, mas na vida prática talvez nunca tivesse tão boa aplicação… A Glória, que é tão rebelde, já aprendeu com ela alguma coisa… Faz crochê! É uma coisa abominável, o crochê; mas, enfim, é uma prenda… Eu deveria ter tomado esta resolução há mais tempo…– Talvez não tivesse vindo esta mulher… Outra seria assim? – Não! Ontem, por exemplo, entrei em casa uma hora antes do costume; atravessava o jardim, quando senti acordes no piano; mas acordes bem harmônicos, vibrados por dedos disciplinados, conscientes. Ouvindo-me tocar a campainha, ela fugiu da sala; e quando eu entrei, um pouco curioso, con- fesso-te, encontrei o piano aberto, mas a sala deserta… Logo, esta mulher é uma mulher educada,; desenha, aí está esse lírio, que o prova; sabe música e escreve com firme caligrafia. Glória tem aqui uma excelente companheira e a minha casa uma alma inteligente, que lhe faltava desde a morte de Maria, que aliás não era tão prendada… Enfim, enquanto eu me visto, examina essa caderneta, acolá, naquela mesa…– Para quê, meu velho? Só a ti compete isso. Eu não entendo de cifras. Mesmo de almas, apesar de me ter dedicado a elas, cada vez entendo menos… Estou um ignorantão.– Almoças comigo? almoças, sim, e vais ver o que é uma mesa bem posta; sempre com flores e com frutas. Esta mulher deve ter sido criada com luxo. Noto que ela gosta de rendas… Enfim, estou contente!– Lamento.– Hein?– Lamento.– Estás doido!– Não.– Explica-te. Ah! já sei! pensas talvez que estou apaixonado?! Quem me dera, Assunção, que assim fosse! Não sei que filtro misterioso tinha a minha pobre Maria, que não me deixa amar mais ninguém!… Se eu fosse espírita explicaria isso bem, dizendo-te que a sinto à roda de mim, e que ela se interpõe mesmo entre os meus mais frívolos beijos! Mas sabes que não sou espírita, nem religioso. O que me apraz, nesta situação, é sentir em roda de mim a influência de uma mulher moça, sem contudo a ver nunca. Gosto do silêncio e da ordem e a sua presença me perturbaria; assim, ela preside à minha casa, sendo para mim como um ser imaterial, que não me impõe a maçada dos cumprimentos, e eu vivo rodeado de solicitudes, podendo conservar a minha impassibilidade. Não acredites que me seja possível amar outra mulher, como amei a minha… O ciúme dela criou tantos fantasmas que eu mesmo acabei por temê-los!– Pois foi para espantar um desses fantasmas, que tua sogra me chamou ontem. Jantei lá em cima.– Sim?! E Glória? como a achaste?– Perfeita, isto é, perfeita quanto ao físico. Parece uma maçã madura. Até a pele lhe cheira a fruta! Mas escuta: a baronesa, como toda a gente, menos eu, desconfia que tens pela tua governanta uma adoração menos espiritual.– Já me tardava, o ciúme! Maria vive naquele coração como no meu!– Folgo que a compreendas e a desculpes… que tencionas fazer?– Nada. Afirma-lhe tu que não existe ligação absolutamente entre essa pobre moça (que conheces muito melhor do que eu) e o viúvo da filha…– Já afirmei.– E então?– Não se contentou…– Achas então que devo despedir esta senhora, que me torna a vida agradável, fácil e boa, só por um capricho da minha sogra?– Acho.– Ora! isso é levar muito longe a minha afeição filial!– É uma medida de prudência…– Mas se eu já te disse que estamos na mesma casa e é como se morássemos a cem léguas um do outro! De que cor são os seus olhos? nem sei. Dize a minha sogra que farei tudo por ela,

A Intrusa | Capítulo VII Read More »

A Intrusa | Capítulo VI

Desde que fora entregue aos avós, era a primeira vez que Maria da Glória dormia fora de casa. A baronesa morria de impaciência por vê-la voltar; à tristeza da ausência juntava-se um cuidado que a punha doente. Que teria sucedido à sua netinha, longe do seu carinho e da sua vigilância? Se ela chegasse com febre! Que ideia maldita a de tirarem a criança dali, para a meterem na cidade, por uma noite inteira!Mas a Maria chegou alegre. Saltou do carro sobraçando um grande embrulho de pastéis. A baronesa estendeu-lhe os braços, com os olhos luzindo de alegria.– Vem, meu amor! Eu estava com tantas saudades! Coitadinha…– Coitadinha por quê, vovó?! Eu estou boa. Gostei muito!– Ah, gostaste muito… Então não tiveste saudades minhas…– Tive, mas gostei. Tome estes pastéis, são muito bons!– Eu também tenho um doce guardado para ti.– Onde está?– Depois… escuta, conta-me o que fizeste.– Passeei com papai, toquei, brinquei… já disse: gostei muito!– E…– E… e o quê?!– A tal… a tal mulher, como a achaste?– D. Alice? É tão boa! sabe? ontem ela me ensinou a fazer crochê e deu-me depois a agulha e o novelo de lã!– Ora, que prenda, crochê! Eu não aprecio isso. Ela é bonita ou feia?– É bonita!– Ah…Maria percebia bem que a avó não estava contente; mas continuava a açular o seu ciúme, com maldade.– Tomaste banho hoje?…– Tomei. Foi d. Alice quem me penteou. Sábado voltarei para lá, sim, vovó?– Já?! mal chegaste já pensas em voltar!– D. Alice pediu…– Ora, d. Alice!A baronesa retinha a neta a custo entre os braços. Maria tinha pressa de ir ver os coelhos e verificar se lhe tinham apanhado uma bela manga rosa que ela trazia de olho havia dias…– Sossega, menina! Olha para mim!– Estou com pressa…– Deixa-me tirar a faixa… como este laço vem mal dado… não hás de ir com este vestido para o quintal! Que penteado! Logo se vê que a tal mulher não tem jeito para tratar de crianças! – Como não tem?! É tão delicada…– Dize-me cá: em que quarto está dormindo?– No quarto azul…– Da sala de jantar?!– Não. Em cima, aquele do terracinho.– O gabinete de trabalho de Maria! Será possível? Para uma empregada, um quarto tão bonito… E tu, onde dormiste?– Ao pé dela.– Na mesma cama?!– Não; mas no mesmo quarto…A baronesa suspirou. Ela não pudera conciliar o sono, em frente à cama vazia da neta! E a criança ingrata, ao lado da inimiga, nem pensara nela! O trabalho da baronesa seria agora afastar Maria quanto possível da idéia de voltar à cidade. Disputá-la-ia à outra, a ferro e fogo. A verdade é que Maria exagerava a sua simpatia por Alice, por perceber o desgosto da avó, assim como se comprazia em torturar Alice na ausência da baronesa…No meio dessa semana o Feliciano foi, a mandado de Argemiro, levar uma carta à chácara dos velhos.Glória corria pela chácara; o barão lia sob o alpendre e a baronesa, a seu lado, cerzia meias, sossegadamente. O negro, todo emproado e bem vestido, entregou a carta à velha, que foi a mais pronta em estender a mão.– Então, Feliciano, como vai tudo por lá?O negro sorriu, meneou a cabeça e calou-se.– Que temos? – indagou o barão.– Uma carta do Argemiro; pede-me que não me esqueça de mandar Maria no sábado!– Pois lá a levarei.– Não pode ser. Vou no domingo com ela à Tijuca; já está isso decidido.– Tijuca! Que idéia é essa?– É uma idéia como outra qualquer! Estou sempre como os caracóis metida em casa, e quando falo em sair lá vem tudo abaixo!– Estimo que saias; mas que diabo! Vai noutro dia à Tijuca e deixa a pequena ir ver o pai no sábado, como se combinou.– Há muitos sábados; neste ela não poderá ir. Ele que venha jantar conosco no domingo. Eu vou jantar à Tijuca com a minha neta e voltarei às quatro horas para casa. É uma promessa.– O Argemiro pode ficar sentido…– Que fique. Eu preciso mais da neta que ele da filha. Lá tem outras consolações…O Feliciano sorriu e aprovou com a cabeça. O barão levantou-se e foi para o escritório re- sponder ao genro. Antes mesmo que a baronesa perguntasse qualquer coisa, o Feliciano resmungou:– Aquela casa já não parece a mesma… se a senhora visse! Até me dá saudades de quem está no céu!… Pobre de quem morre!A baronesa sufocou o desejo de indagar do criado aquilo que mais queria, e recomeçou a trabalhar, limitando-se a oferecer:– Entre, Feliciano; vá lá dentro tomar uma xícara de café.– Obrigado; tomei lanche lá em casa antes de sair… apesar de que agora anda tudo muito contadinho…– Isso é bom. O tempo não está para estragos…– Sim, mas poupa-se de um lado para se gastar do outro; afinal, para o patrão as despesas talvez sejam maiores… D. Alice tem uma récua de parentes pobres… Para a gente às vezes o pão não chega, entretanto não bate bicho-careta na porta que ela não dê do bom e do melhor do armário. Até vinho. – Até vinho! – exclamou inconscientemente a boronesa; e logo, reprimindo-se: – A caridade éaconselhada por Deus…– Mas deve começar por casa… A senhora não diga nada ao patrão, porque ele agora é só: d.Alice na terra e Deus no céu!– Ah…– A senhora sabe que eu sempre fui um empregado de confiança, que punha e dispunha de tudo como entendia; pois hoje não posso mover uma palha, que não me tomem satisfação. Ela, com o seu modo de santinha, faz tudo quanto lhe dá na cachola! Eu não gosto de falar, mas… há certas coisas… ontem não afirmo, mas pareceu-me que d. Alice trazia no peito um alfinete…A baronesa pousou a costura nos joelhos e levantou os olhos para o negro.– A senhora não se lembra de um alfinete que iaiá sua filha gostava de usar e que representava uma andorinha de pedras?A velha corou até a raiz dos cabelos e

A Intrusa | Capítulo VI Read More »

Rolar para cima