Tarde de Clássicos

Uma Lágrima de Mulher 2 | Cap03 e 04

03 Fatal metamorfose!Maffei e a filha rolavam pelos despenhadeiros da sociedade; dera- lhes o primeiro empurrão a cobiça, a posse o segundo, depois o orgulho e finalmente o vício. No cair vertiginoso tentavam, baldadas vezes, agarrar-se às asperezas do precipício e não conseguiam mais do que sujar as mãos, porque a lama faz escorregar e suja.Afigurava-se-lhes entretanto estarem a voar para cima; têm destes efeitos singulares as grandes quedas. Às vezes supomos subir quando evidentemente caímos. Viam tudo luzir em torno deles, sem se lembrarem que a lama também tem o seu brilho, em lhe batendo a luz… do ouro.E caíam! Caíam sempre, porque o mal é como a lua – cresce ou diminui, nunca estaciona. Uma noite, seriam duas horas da madrugada, os salões da casa da Rua de Toledo reverberavam ao clarão aristocrático das mangas multicores de cristal.Era noite de baile.O baile tem um quê de morcego – só aparece à noite e rouba as cores às raparigas.Havia grande folgança na casa, porque muito se ria e dançava; a festa chegara às fases do frenesi e da loucura.Em uma das salas porém, lívido, monstruoso e feroz, encerrado ali como uma fera na jaula, o jogo devorava, silenciosamente, terras, palácios, jóias, dinheiro e reputação; era um tragar de jibóia – engolia sem mastigar.O silêncio indicava que o monstro fazia a digestão surda e pesada, porém fortíssima – desgasta o ouro e o diamante com a imperturbabilidade e pachorra de um cônego velho e gastrônomo, que rumina, com apetite e método, o fruto da caridade do povo.A consciência sentia vertigens de olhar por muito tempo para aquele grupo, espécie de autômato, movido pela cobiça e governado pela força abstrata do vício.No meio da mesa, brilhava como um centro planetário, o monte de moedas de ouro, em torno do qual toda a força e atenção dos circunstantes gravitavam impacientes e desordenadas.Era o centro de gravidade das almas daqueles miseráveis; para ele convergiam todos aqueles sentidos cariados e todos aqueles corações sujos– pátria, família, aspirações, glória, tudo, tudo se resumia no punhado de moedas.Não se ouvia uma palavra.Como estátuas movediças atiravam à boca escancarada da fera os seus bens, os do filho, o futuro da própria família e o da alheia.E a fera, como uma vala de cemitério, ia sorvendo em silêncio tudo o que lhe lançavam, enquanto todos jaziam a meditar, que também a gente medita para fazer o mal.Todavia, toda e qualquer consciência tem horror ao jogo; a ninguém incomoda tanto o tapete verde como ao próprio jogador – enquanto lança à sorte o que possui, cala aos pés a pobre consciência, que, ao lado das escarradeiras, dorme ébria e envergonhada debaixo da mesa.O salão principal do baile oferecia um espetáculo inteiramente oposto ao que acabamos de esboçar.Não se ouvia aqui o ressonar pesado do jogo, sentia-se a febre vertiginosa da dança; aqui era tudo delírio e loucura. A atmosfera, morna, pesada, abafadiça e de um branco opaco, enervava a cabeça e dilatava os sentidos.A atmosfera de um baile daquela ordem, no seu apogeu, afeta singularmente a economia animal dos moços. O coração como que se derrete ao calor dos galanteios, dos perfumes, das luzes, dos vinhos, dos vapores estimulantes que exalam os corpos cansados das mulheres, e derrama-se por todo o corpo como um filtro diabólico e sensual, que percorre e excita os tecidos orgânicos, precipitando as suas competentes funções; o exercício da valsa dá ao coração formas extravagantes e ca- prichosas – fá-lo pular, estremecer e palpitar; e, conforme as impressões que recebe, enforma-se, dilata-se, encolhe e chega a tomar formas obscenas.A gente mais facilmente ama nessas ocasiões, porque a atmosfera e o cansaço aceleram os fenômenos vitais. Em tais circunstâncias uma resistência é quase impossível – afinal o corpo descai e languesce volutuosamente; percorre todos os membros uma moleza gostosa e doentia; sentimos cócegas nos cantinhos da boca e no interior das ventas; o rosto afogueia-se; desfalece a energia; o hálito queima; os dedos criam uma sensibilidade igual à da língua; o vítreo dos olhos raia-se de sangue e faz- nos ver tudo por um prisma vermelho fantástico.O ópio não produz efeitos tão deslumbrantes.Quanto mais a gente dança, quanto mais se agitam os membros estafados, tanto mais se envenena o ar; as flores terminam a obra roubando o pouco oxigênio que resta na atmosfera. Resulta de tudo isto um ar viciadíssimo e tão gasto e condensado que se pode comer em vez de respirá-lo.Quanto mais tempo dura o baile e com ele a aglomeração e o exercício, tanto maior e mais veemente é a necessidade de respirar, e então sorve-se com sofreguidão o ar e o pó já muito usados por todos.Os pulmões aspiram e expelem sempre o mesmo ar e o mesmo pó.O ar é como um pensamento e o pulmão é como um cérebro, acontece que o mesmo ar penetra, como uma idéia geral, todos os pulmões, e esse aí ou essa idéia única corre toda a sala, entra por todos, domina quem a recebe e acaba por formar, identificando toda a sociedade – um só pulmão e uma só cabeça, isto é, uma só vontade e um só querer.Eis aí o que era um baile em casa de Maffei. Simplesmente uma reunião de moços de ambos os sexos, metidos numa sala bem fechada, onde dançavam, pulavam, cansavam e apodreciam, como muitas maçãs em um cesto, onde é bastante haver uma podre para contaminar e corromper as outras.Esse contacto infernal era uma lógica conseqüência do ar viciado e da simpatia.E tanto é assim que em certas ocasiões não queremos tomar parte num divertimento que nos parece mau, e, uma vez entrados, empenhamo- nos nele tanto como os que lá estavam: veja-se de parte um baile e este se nos afigurará uma reunião de doidos. Num combate se verifica a mesma coisa – travada a luta são todos bravos; nos cárceres são todos maus; nos hospitais são todos doentes; em um naufrágio são todos religiosos e assim por diante.O ar sempre transmite a quem o

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Uma Lágrima de Mulher 2 | 01 e 02

01 Na célebre Rua de Toledo, em Nápoles, porventura mais bela hoje do que no ano de 1843, época em que sucederam os fatos que vamos narrando, figurava uma casa cinzenta com cimalhas de mármore cor-de-rosa.O edifício tinha trinta metros de altura sobre sessenta de comprimento, e, a julgar da colocação e feitio de portas e janelas, e atentando para as folhas de acanto que ornavam o ábaco das colunas de dez diâmetros de altura e pertencentes sem dúvida à rica e variada ordem coríntia, era talhado pela escola antiga.A face dianteira, posto que um tanto chata, era bem arquitetada, podendo ser dividida em três partes distintas. – A central, com cinco janelas de honra e três portas de entrada geral, sendo a do centro mais larga e mais guarnecida – e as duas partes laterais, inteiramente iguais entre si, com três janelas cada uma e fechando em graciosa curva as extremidades do frontispício.Destas extremidades partiam duas alas de colunas, que, sustentando um esférico avarandado de balaústres do mesmo mármore das cimalhas, ladeavam elegante e circularmente o edifício.O portão central com pilares de mármore também cor-de-rosa, abria para um átrio, espécie de corredor quadrado, cujas paredes betumadas com terra cozida, apresentavam em alto-relevo, assuntos mitológicos, notando- se alguma monotonia na disposição simétrica das figuras meio humanas e meio irracionais, sendo na maior parte fabulosas.O chão desse corredor, ladrilhado de pedra de diversas cores, terminava por uma ampla escadaria de pedra calcária, dividida em dois lances, que se encontravam na extremidade superior. Aí uma varanda gradeada com vista para o corredor dava passagem para o interior da casa por uma larga e bonita porta, que comunicava imediatamente com a sala de espera, na qual uma infinidade de estatuetas, vasos de pórfiro e outros muitos variadíssimos objetos de arte distraíam a atenção de quem lá se achasse. Seguia-se a sala de visitas, preparada e guarnecida com gosto e rigor, sobressaindo do roxo-escuro das paredes a brancura opaca dos bustos e estatuetas de jaspe, colocadas de espaço a espaço sobre trabalhadas peanhas de basalto; magníficas mesas de sicômoro, caprichosamente talhadas, refletiam-se, pejadas de delicadas tetéias, nos espelhos oitavados com moldura de metal dourado embutido no ébano; o chão, de madeira brunida, luzia como uma lâmina de aço polido, refletindo o fundo artisticamente talhado das cadeiras e das mesas.Atravessavam-se ainda algumas casas, destinadas a salões de baile, alcovas particulares e câmaras de recreio, tais como biblioteca, sala de fumar, quarto de armas etc.. etc.. até chegar a uma enorme varanda que costeava em semicírculo de um lado a outro toda a casa.Efetivamente, dessa varanda gozava-se de uma vista esplêndida e variadíssima; das janelas da frente devassava-se a Chiaja, Vila Realle e lados de Capo di monte; quem aí estivesse veria o formigar constante e geral da população e sentiria o confuso motim dos cafés, restaurantes, ourivesarias e casas de modas, de que já então abundava a Rua de Toledo; daí envolveria agradavelmente com a vista o soberbo Palácio Real com o seu jardim à beira do golfo, e os seus grupos de bronze no começo do jardim.Do fundo davam as vistas sobre uma magnífica chácara, pertencente à casa, bem plantada e guarnecida, tendo no centro um belo chafariz de mármore rajado. Galgavam depois os olhos os grupos amontoados de casas e quintais, e alcançavam finalmente os pitorescos arrabaldes, anunciados pela copa de árvores seculares. 02 Nada há tão desastrado e perigoso como mudar repentinamente de posição.Modificam-se os caracteres mais firmes e delicados e confrangem-se as crenças mais arraigadas; é um desmoronar doloroso, é um desesperar de náufrago: ilusões desfeitas, convicções profanadas, afetos destruídos, tranqüilidade nula, amor proscrito – tais são os efeitos da luta desigual dos hábitos de toda a vida com o capricho vaidoso de um dia; tais são os restos que, após a tormenta, sobrenadam à flor do oceano revolto da alma, como restos de um coração que naufragou.Grosseira e estúpida ambição é a que leva o homem a trocar a paz segura do lar pela suposta fortuna.Foi isso que sucedeu à família do pescador – enriqueceram.Para alguns enriquecer é naufragar, não em alto-mar, porém em alta sociedade. O vício é a fome desse naufrágio.Maffei enfronhara-se na opulência como numa casaca alheia: sentia- se mal; incomodavam-lhe as mangas compridas demais, porém a tudo fechava os olhos, contanto que desses sacrifícios resultassem para ele dignidades e considerações.Era o seu sonho dourado.E com essas honras e com esses supostos títulos acharia ele a felicidade?Não, decerto, porque a verdadeira felicidade é incompatível com o ruído e com o fulgor. Não, porque ela é tranqüila, singela, econômica e alheia a tudo que é brilhante e espetaculoso.A felicidade, como o mais neste mundo, é relativa, e só pode subsistir dentro de seus competentes limites.Maffei, cego pela ambição, buscava uma felicidade alheia. Desgraçado!… Fatalmente seria vitima da sua cegueira, tanto quanto uma ave que tentasse mergulhar ou um peixe que quisesse voar.A casa cinzenta da Rua de Toledo era propriedade do antigo pescador.Com algum jeito, conseguiu introduzir nela o jogo elegante; receber todos os sábados e gastar todos os dias.O ouro é para o parasita o que o ímã é para o ferro: em pouco tempo encheram-se os salões de Maffei. E no meio daquela gente que o adulava, o rico burguês sentia-se grande, invejado e respeitável.Entretanto, aquela roda se desenvolvia e multiplicava com a prodigiosa fecundidade da larva.Mas donde lhe vinha essa gente?Não sei!… A podridão que responda donde lhe vêm os vermes.Tudo neste mundo tem a sua conseqüência, o seu séquito próprio de misérias, o seu acompanhamento natural e espontâneo – a glória tem a vaidade; o amor o egoísmo; a podridão o verme. É a lei fatal dos contrastes e dos extremos tocados: não há sentimento que não tenha uma extremidade na terra e outra no céu, um pé no berço e outro no túmulo, um olho na luz o outro na treva.Foi por isso que, ao cabo de três anos, Maffei tinha com heróicos esforços, cevado, relacionado e habituado aos costumes de sua

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Uma Lágrima de Mulher | Cap17 e 18

17 Entretanto as nuvens negras cresciam no céu, como os fantasmas crescem na sombra, como o remorso cresce no coração, como a ferrugem cresce no ferro e como a úlcera cresce nos pulmões.Em pouco o céu se convertera em trevas.O mar, cada vez mais encarapinhado, quebrava-se de encontro à rocha, salpicando-a de cuspiduras espumosas e grossas, como as de um ébrio.Com este salivar a pedra se tornava mais e mais escorregadia. Já o pé não encontrava resistência.Peito a peito, braço a braço, lutavam os dois homens; ora escorregava um e se firmava no adversário; ora cambaleava o outro e restabeleciam o equilíbrio.A luta continuava.Abraçaram-se mais. Estreitaram-se com o frenesi de dois amantes moços que se encontram depois de longa ausência.E lutaram!De repente deslocou-se o ar com a detonação da queda de um sócorpo.Foi uma queda para dois; rolavam formando um só vulto.Lembrava aquilo uma besta informe nas agonias da morte: os doisformavam uma fera.Era a mocidade fundida na cólera de um velho. A força dos vinte anos e a cólera dos cinqüenta eram o motor dois do bruto negro, que engatinhava, rolava e se torcia na lisura da pedra, um monstro marinho, fora d’água.À claridade fosfórica do mar a besta movia-se em todos os sentidos e tomava novas proporções; parecia fantasticamente ora crescer, ora diminuir. A boca espumosa do velho esfregava-se pela cara do moço, segredando-lhe em tom terrível e quebrado pelo cansaço estas palavras:– Pois morrerás! Miserável!… E mordiam-se.– Pois morrerás!E procuravam matar um ao outro. Lutavam!E a rocha cada vez mais escorregadia, o céu mais negro e o mar maisbravo.A luta tendia a enfraquecer: a fera ia sossegando; a massa brutadilatava-se: a mole negra parecia diluir-se.Era o cansaço.Desfaziam-se como uma nuvem negra no horizonte.Como um urso enorme e velho, arrastavam-se surda e vagarosamente para a borda do precipício.Miguel se apercebera disso e reagiu: com um esforço supremo lograra tomar sob si o velho, ficando de gatinhas sobre ele. Tinha um aspecto feroz; o sangue escorria-lhe por entre os dentes e pelas ventas; a posição, como o olhar, eram irracionais. Nesta atitude, ia atirar-se à garganta do adversário, quando este, concentrando o resto das forças, reagiu por sua vez: com um empurrão expeliu de si o moço.Miguel rolou pela pedra até segurar-se nas asperezas das bordas do precipício.Maffei não lhe dera tempo para mais, de um salto deitou-se ao comprido no chão, e engatinhando com ligeireza de tigre, agarrou-o pelas costas.Cinqüenta pés os separavam do mar, e nesse ponto a pedra era inteiramente íngreme, quase cavada.Miguel torcia-se todo nas mãos do velho.De repente um grito agudo e rápido, sucedeu a uma gargalhada surda, estalada pelo cansaço. Gargalhada como só sabem dar um velho mau ou uma mãe doida.Maffei de bruços sobre a rocha, via tranqüilamente rolar pelo precipício o corpo ensangüentado de Miguel. Um sorriso cansado e triunfante encrespou-lhe os lábios esfolados, ao ouvir o ruído cavo de um corpo que cai na água.A tempestade, que se preparava ameaçadora, desabou encerrando o espetáculo; e o mar, contente de sua presa, gargalhou com seu rir de espumas.Começou a chover copiosamente.Tranqüilo, como nos seus dias mais tranqüilos, o velho levantou-se, sacudiu a roupa molhada e pôs-se a andar para casa silenciosa e pacificamente, como uma menina quando volta do banho do mar. Entretanto a tempestade, iracunda, flamejava além. 18 No dia seguinte, Maffei e a família abandonaram a formosa ilha, e, no seu completo isolamento, debatia-se a casinha branca nas vascas de um incêndio, ateado de propósito pelo pai de Rosalina.Defronte daquele chamejar doido e desapiedado, Castor, o cão, uivava plangentemente.

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Uma Lágrima de Mulher | Cap 15 e 16

15 Continuava o sopro brando e sussurrante da brisa do mar.Rosalina tinha a cabeça pendente para a terra e os seus cabelos, indiferentes, brincavam ao soprar travesso da brisa com as pedrinhas soltas na ladeira.O silêncio principiava a coalhar.A cinco passos de distância, de pé, com uma lanterna furta-luz na mão esquerda, e com a direita sustentando uma machadinha de abordagem, estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a boca cerrada a salivar bile.Luzia-lhe o olhar com a mesma vermelhidão da lanterna; os cabelos empastados de suor, caíam-lhe úmidos pela testa. Estava medonho.Era um quadro sombrio e lúgubre.A figura austera do velho, mergulhada na penumbra, contrastava com o grupo iluminado do primeiro plano. A atmosfera começava de se fazer carregada e pouco e pouco escondera a lua.O foco da lanterna aumentava a densidade das sombras, onde os olhos de Maffei brilhavam como os de um gato bravo. Esse olhar tinha as fosforescências da pupila do tigre. O desgraçado Miguel sentia mais que nunca a influência magnética daqueles olhos que o fitavam da escuridão; afiguravam-se-lhe a própria sombra a espiá-lo.Nessa ocasião a lanterna tinha um quê de humana e atrevida: parecia uma cara risonha e irônica a contrair-se no vidro sujo de pó e a deitar para fora a língua comprida e ensangüentada, língua de luz, cuja claridade doía como um insulto.Quando essa claridade caiu em cheio no rosto de Miguel produziu- lhe o efeito de uma bofetada. Estremeceu e corou de vergonha.Felizmente voltara-lhe o sangue-frio.O velho, com um gesto imperioso e grosseiro, ordenou-lhe que o acompanhasse; Miguel maquinalmente abaixou a cabeça, enquanto Maffei, sempre calmo, deu-lhe indiferente as costas e pôs-se a subir a ladeira.Rosalina permanecia sem sentidos nos braços do amante, que, com tranqüila delicadeza, segurou-a pelos joelhos com a mão direita e com a esquerda amparou-lhe a cabeça lânguida, e, como uma mãe faria ao pequenino, deitou-a carinhosamente no colo: depois, segurando-lhe as costas com o braço, fê-la descansar com cuidado a cabeça em um dos seus ombros, e começou a seguir silenciosa e vagarosamente o velho.A luz da lanterna ia gradualmente amortecendo, à proporção que no céu o negrume se desenvolvia.No meio do silêncio, destacavam-se os passos cadenciados do velho e o ranger de galhos e folhas secas, que o outono arrojara ao chão.Um ou outro passarinho, enganado pela claridade da lanterna ao passar Maffei, piava do seu esconderijo, cumprimentando o dia artificial.Quando a gente sobe uma ladeira, qualquer peso estafa logo e parece avultar extraordinariamente.Depois de cinqüenta passos Miguel sentiu-se exausto. À proporção que ia subindo, mais íngreme, mais pedregosa e mais difícil era a ladeira; firmava o pé, e a pedra em que o firmava desprendia-se a rolar ruidosamente até a praia; então o equilíbrio e a agilidade substituíam as forças, que aliás lhe minguavam.Para animar-se apertava de vez em quando o corpo de Rosalina, ao que a desfalecida respondia com um suspiro tranqüilo e duvidoso, como o ressonar de uma criança adormecida.Porém pouco e pouco foram desaparecendo os últimos recursos e reproduzindo-se as dificuldades: o suor jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a língua seca; o coração doído; a cabeça perdida; a respiração cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o cansaço fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias. E nessa vertigem acompanhava ele com a vista esgazeada a luz vermelha da lanterna, que gradualmente ia-se afastando, diminuindo sempre.Sem saber por quê, ligava certa correspondência entre as próprias forças e o bruxulear trêmulo da flama; parecia-lhe que, extinta aquela luz, faltar-lhe-ia o ânimo para o resto do caminho; pedia mentalmente a Deus a vida para ela, com o mesmo fervoroso interesse como a pediria para si.Contudo, a lanterna estava já nos seus últimos arrancos.O velho tinha com vantagens de forças aumentado o espaço entre si e Miguel; mais dez passos, oito! Cinco passos! Dois… e chegou!A lanterna escondeu-se, a luz desapareceu para Miguel. O rapaz vacilou, ia cair! Equilibrou-se!…Um vozear confuso e penetrante parecia-lhe dizer aos ouvidos – ânimo!Um esforço mais! Um último arranco!O moço reuniu os destroços de suas forças; beijou com os lábios cobertos de suor o rosto gelado de Rosalina. e cortou de carreira os últimos trinta passos que lhe faltavam.A lanterna crepitara o seu último clarão, podemos dizer, o seu último suspiro, brilhou mais forte e morreu!…Nisto, Miguel acabava de atravessar a porta do fundo da casinha branca e caía desamparadamente no chão, com Rosalina a seu lado.Desabou, quase morto.O suor corria-lhe de todo o corpo: a caixa dos pulmões erguia-se e abaixava-se com a sofreguidão de um fole enorme fazendo grande rumor a respiração ao sair; a voz desaparecera; as pálpebras fecharam-se; o suor convertera-se em umidade pegajosa e doentia. como a última transpiração de um tísico.Sentia vertigens e vontade de vomitar. Era um incômodo comparável ao enjôo do mar. 16 O pescador foi ao interior da casa e pouco depois voltou. Com a presença do velho, Miguel ergueu-se de um pulo – era outra vez um homem.Num dos ângulos sombrios de um quarto, Ângela, ao clarão minguado da luz do azeite, orava à Madona; a claridade mortiça do nicho escorria até à varanda e batia em cheio na palidez nublada do rosto de Rosalina. Estava sinistramente encantadora.Maffei aproximou-se dela, arrastou-a até o leito e voltou.Um gemido da desfalecida atraiu para aí no mesmo instante Ângela; para os corações extremosos, um gemido é sempre um apelo urgentíssimo. Voltava o velho com as mãos vazias e o olhar tranqüilamente feroz; Miguel não era covarde, esperou-o sereno, de braços cruzados.– Precisamos nos entender, disse Maffei com aspereza. Venha! E tomou o lado dos abrolhos, à esquerda da casa.Miguel seguiu-o silenciosamente. Entranharam-se na picada e desapareceram.O caminho não era freqüentado, como que se tornava mais difícil e em parte quase intransitável.Miguel apenas o conhecia; o velho, porém, apesar dos obstáculos e do negrume da noite, que se tomara sombria, caminhava desembaraçadamente e até

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Uma Lágrima de Mulher | Cap11 até 14

11 A casinha branca ficava situada em um dos extremos da ilha, para as bandas do nascente.Era um ponto magnífico.A modesta e simpática vivenda olhava de frente, podemos dizer, sorrindo, para a estrada, que conduzia ao centro povoado da ilha; do fundo saía-lhe correndo, em distância de seiscentos passos, a nossa já conhecida alameda de oliveiras, cujo solo formava um declive suave e fértil, plantado de ambos os lados, com variedade e gosto, até onde o terreno ia pouco a pouco se tornando mais íngreme e estéril com a vizinhança do mar.Então principiava uma ladeira pedregosa, que ia acabar, em grande distância, numa ampla e formosa praia, de areias claras e batidas livremente pelos ventos.Do lado direito, avizinhava-se o mar, entre o qual e a casa interpunha-se somente uma clareira, onde Rosalina costumava sentar-se à tarde, e uma moita de espinheiros, espécie de cerca natural, que ali entrançara a natureza, para servir de ameias, que resguardassem as bordas perigosíssimas desse lado.Do esquerdo, o espaço entre o mar e a casa era desproporcionalmente maior, porém menos cultivado e coberto de uma vegetação enfezada e má. Por entre esse mato nascia uma picada, tão irregular e confusa, e tão dificultada pelos abrolhos e sarças, que quase não se deixava perceber; e tanto mais ingrato era o solo, quanto mais se afastava da casa.Perto desta era a terra cultivável e solta, mas ia gradualmente se tornando calcarífera até chegar ao estado de pedra, à proporção que se aproximava das bordas da ilha, terminando por um pedregulho alcantilado, inteiramente liso e escorregadio, pelo salpicar constante do pó úmido das vagas, que se despedaçavam contra ele. A rocha ficava a pique sobre o mar, um precipício medonho! Nas noites claras do estio, alguém que trepasse à penedia até galgar os alcantis aprumados e reluzentes, abrangeria, só com um abraço de olhos, a imensidade dos horizontes celestes e marinhos; e se, chegado à borda do abismo, se debruçasse um pouco sobre a ingremidade da rocha, julgar-se-ia solto no espaço, sem ligação alguma com este mundo e só preso a Deus pelo espírito.Então sentiria debaixo dos pés os soluços espumosos das ondas, e sobre a cabeça a linguagem enérgica do nordeste, revelando à natureza adormecida os mistérios de criação dos mundos.E o mugir dos ventos e o rugido colérico do mar lhe pareceriam nesse instante de transporte, o resumo supremo de todas as forças, de todas as paixões, de todas as virtudes, de todos os vícios, de todas as tempestades dos homens e de todas as tempestades dos elementos; chegar-lhe-iam ao coração como o índex fabuloso do universo.Assim, medonho e belo, era o lado esquerdo da casinha branca, o que o tornava desprezado e quase ignorado, a não ser pelas gaivotas e outras aves aquáticas, que lá subiam nesses cumes, à procura do pouso e da solidão. 12 Tinha começado o inverno e, apesar disso, a noite marcada para a entrevista dos dois amantes era tão serena, que faria chorar de inveja a vaidosa primavera.Nem uma nuvem perturbava o aspecto ingênuo e puro do céu.As oliveiras solitárias e esguias, como toda a vegetação de Lípari, em virtude da leveza da atmosfera, beijavam-se volutuosamente, impelidas pela brisa fresca do mar, e projetavam no chão, contra a luz da lua, uma sombra de triplicado comprimento.O vento estorcia-se, uivando como um doido de asas e redemoinhava em torno das oliveiras, cujas sombras desenhavam na aspereza do solo fantasmas singulares e monstros extravagantemente disformes.Às vezes o doido mudava de rumo e quebrava no ar o murmúrio das cantigas dos pescadores, que estendiam a rede do lado do poente.E assim vagavam, soltas e desarticuladas no espaço, vozes confusas e disparatadas.O mais dormia silenciosamente.A casinha branca parecia, ao luar, embrulhada com frio, num lençol de linho alvo.A lua aborrecia-se, coitada! No seu eterno isolamento! 13 Por volta das dez horas da noite um barco costeava a ilha pelo lado da praia.De vez em quando o vento, caprichoso e vadio, trazia de rastros alguns fragmentos de uma bela barcarola, que necessariamente vinha do barco. Eram as notas de uma chorosa rabeca, espécie de harmonia chorada, ou melhor, de pranto harmonioso. O certo é que, música ou pranto, doía à gente ouvir soluçar daquele modo. Se fosse possível fazer do coração um instrumento e tangê-lo, com certeza havia o som de ser o mesmo que então se ouvia.O barco vinha-se aproximando lentamente da praia, e lentamente ia- se calando o instrumento; daí a pouco paravam ambos, e um vulto de homem, com ares de pescador, soltando o ferro, pojava na areia.O barqueiro depositou a rabeca sobre um dos bancos de seu barco, conchegou melhor o capote de pescador e, dando alguns passos pela praia, encarou a silenciosa ladeira, frouxamente clareada pelo luar. Miguel não faltara à entrevista, porém, temendo vir pela estrada e ter que passar pela porta de Maffei, resolvera entrar pelo fundo, disfarçado em pescador; precauções necessárias para não ser descoberto pelo pai de Rosalina. O mar sempre era mais seguro.Posto em terra, atravessou o espaço, compreendido entre a água e a ladeira e deitou a subir cautelosamente.Subiu sempre até encontrar a primeira árvore; aí parou e ficou a escutar.Era tudo absolutamente silencioso.Miguel encostou-se ao tronco da árvore e esperou.Sentia-se mal, o pobre moço! Desde que recebera o bilhete de Rosalina, meditava um meio de salvar a situação, e, por mais que desse voltas à cabeça, nada descobrira.Agora, prestes a vê-la, encostado à oliveira, com o cotovelo direito na mão esquerda e com a outra escondendo o rosto, fazia castelos magníficos e desfazia-os, com a mesma facilidade. Imaginava as coisas mais absurdas, os projetos mais irrealizáveis.Lembrava-se de raptar Rosalina, fugir com ela para qualquer parte; ou empregar-se em Rezina, como operário, e especular, como fizera Maffei; ou deixar-se morrer; ou matá-la.Enfim, mil outras idéias deste gênero encontravam-se, debatiam-se, a morderem-se sangrentas, no cérebro molesto do pobre rapaz, como, na mesma pátria, irmãos se devoram e matam em tempo de guerra intestina.Assim permanecia ele estático, com o rosto escondido na mão esquerda, invejando

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