Tarde de Clássicos

Uma Lágrima de Mulher | Cap 08 até 10

8 Foi-se passando o tempo e o recém-chegado sem explicar a melhora da situação.Também as mulheres não se animavam a interrogá-lo; compreendeu a boa gente que tinha melhorado de sorte, e a Madona por isso recebeu nessa noite uma grinalda nova toda perfumada.Com efeito Maffei tinha enriquecido.Em principio encontrou em Rezina a sorte adversa; porém, com energia e ambição soubera poupar e avultar um pecúlio, que, emprestado a juros e especulações mais altas, em pouco tempo se multiplicara. A economia rigorosa concluiu a obra, crescendo na razão direta do engrandecimento do capital.Outros atribuíam a um princípio ilícito essa riqueza; aqui diziam que Maffei roubara; ali, que a fortuna o protegera, fazendo-lhe achar dinheiro nas escavações.Sabemos que em Herculano não apareceu muito em dinheiro, porque a população tivera tempo de fugir, quando a cidade foi submergida; também sabemos que em Nápoles ninguém se queixava de Maffei como ladrão, mas o que era patente e real é que o pai de Rosalina voltava rico, mais ambicioso e necessariamente pior de coração.Luzia-lhe agora com mais intensidade no olhar a cobiça vermelha e sinistra, como um farol no meio da tempestade.E não havia porventura uma tempestade naquela cabeça? Sim! Porém toda interior.Não se ouviam os trovões nem os vendavais, a revolução ia-lhe por dentro e só chegava à superfície da fisionomia desfeita em espuma biliosa nos cantos arqueados da boca e em sangue mau no vítreo dos olhos.Isso era nos momentos de cólera.À monotonia bondosa da casinha branca sucedeu a tristeza, espécie de pavor, que cerca o homem de má catadura.Contra ele principiavam já a murmurar, na ilha, e, se até ali tinha tido poucos amigos, nenhum desses lhe restava agora. Em geral o malqueriam, davam-lhe a paternidade de coisas horríveis; crimes medonhos, maldades atrozes, tudo servia para explicar a sua imprevista fortuna. Todavia, se bem que contrariado e só, ia ele vivendo, falava menos e com mais indelicadeza; durante o sono, balbuciava palavras singulares. Frenético e aborrecido, agitava-o sempre a mesma impaciência e o mesmo cogitar.Quais seriam as suas intenções?…Não o sabiam as mulheres, nem se animavam a perguntar-lho.Com todas estas coisas ia avultando a tristeza na casinha branca. Rosalina já não era a mesma cotovia alegre e buliçosa, cantadora e risonha; se cantava agora, era triste e suspirando. E as suas notas e suspiros iam, repassados de muita saudade, em busca de Miguel, que, ao chegar o seu velho inimigo, arrancara-se dali, como o galho despartido que o furacão arremessa com estrondo ao longe.Ângela, cada vez mais devota, passava agora a maior parte do tempo a rezar.Desconsolado se tornara esse lar, que já nalgum tempo fora vivo quadro de paz e felicidade.Agora o quadro era sombrio.Três únicas figuras formavam o primeiro plano. – Um velho áspero, que cisma – uma devota, que reza – uma filha, que suspira; e lá, no último plano, meio escondido nas névoas do poente, um vulto esbatido nas meias- tintas do horizonte – um homem, que chora abraçado a uma rabeca. Ah! ainda há no quadro uma forma negra, mais um borrão que uma figura – o cão.Também vivia triste e chorava o animal, que em noites de luar soltava uns uivos tão arrastados e queixosos, que enterneciam o coração da gente. 9 Assim decorreram duas estações, impregnadas, com a vinda de Maffei, de aborrecimento e marasmo.Uma noite, estavam todos reunidos em volta da mesa; era a hora da ceia. Rosalina servia, preocupada, um prato de peixe com lentilhas; reverberava-lhe nessa ocasião uma esperança na alma, tinha de todo resolvido falar ao pai a respeito de Miguel.Ângela conhecia os planos da pupila e prestava-se, se fosse necessário, a ajudá-la.A refeição passou-se silenciosa; ao terminarem-na, quedaram-se por meia hora, imóveis nos seus lugares, mudos.Ouvia-se lá fora bater o vento nas oliveiras, ouviam-se as cantigas longínquas dos pescadores nas praias opostas. Rosalina, com as mãos frias, trouxe a Maffei o cachimbo.O velho pôs-se a fumar voltado para o lado da rua e a seguir com a vista o caminho, que lhe nascia à porta. Estava sombrio como nunca.Faltava a Rosalina ânimo de falar ao pai; finalmente, tomando uma resolução extrema foi-se-lhe encostar ao grosseiro espaldar da cadeira.O homem de tão preocupado não se apercebera disso; um beijo da filha despertou-o, porém não o comoveu. Refratário à ternura, continuava secamente a fumar.Rosalina, cujo coração pulsava cada vez mais impetuosamente, passou-lhe um braço em volta do pescoço, e, com a mão livre messando-lhe os cabelos; entre o receio e o desejo, mais medrosa do que terna:– Estou triste!– Por quê? – interrogou indiferentemente o pescador. Ângela ouvia com interesse este diálogo.– Tenho medo de pedir-lhe uma coisa…– E por que tens medo? – insistiu o velho, sempre a fitar maquinalmente a estrada.– Porque vai ralhar comigo.– Então queres pedir-me alguma tolice?…– Não, senhor!…– Então pede…– Promete não se zangar?…– Sim!– E quando souber que tenho um namorado? – disse abaixando os olhos Rosalina, porém agora mais terna do que medrosa.Ao ouvir as últimas palavras da filha, Maffei tirou vagarosamente o cachimbo da boca e voltou-se, cravando nela os olhos vivos e interrogadores.A rapariga estremeceu empalidecendo, sentia-se já arrependida do que houvera arriscado e com dificuldade conseguiu dizer vacilante:– Não, senhor! Não tenho!– Com que, tens um namorado?! – repisava entredentes o pescador, ruminando a frase.Rosalina conservava o olhar baixo e, perturbada, alisava com a unha do polegar da mão direita a costura do corpinho.– Com que, tens um namorado?!… repetia o velho.– Porém – disse trêmula e sem levantar os olhos Rosalina – ele me quer tanto! E eu estou tão afeita a vê-lo… – e abaixando mais a voz, quase a falar consigo, continuava – que era um bom moço, trabalhador, e que tudo era para bem, ele queria esposá-la, que…– Quem é? – interrompeu asperamente Maffei.– É… é… Miguel Rizio…Um raio não produziria o efeito desta revelação. A fisionomia do velho alterou-se apopleticamente; firmado nas plantas, levantou-se, como impelido pelas molas da cólera e descarregou com bruta excitação na mesa, o punho cerrado e nervoso. Foi um avermelhar

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Uma Lágrima de Mulher | Cap 06 e 07

6 Há dois anos estava Maffei em Rezina.Há dois anos cartas impregnadas de certo cheiro de prosperidade vinham alegrar a família do pescador e sobressaltar o ânimo do pobre Miguel. Contudo, a casinha branca continuava naquela ignorada e encantadora solidão; agora, porém, as oliveiras deixavam apodrecer o fruto nos galhos, o lagar dormia ocioso e as redes da pesca não viam água salgada desde muito tempo.Fazia uma noite deliciosa. Uma dessas noites sem lua, em que a frouxa claridade das estrelas povoa o campo de poesia e amor.O relógio de S. Tiago badalejava, pausada e religiosamente, o toque do crepúsculo, quando Miguel, com a sua rabeca debaixo do braço, seguia abstraído pela orla do caminho, que ia dar à casinha branca.Em breve atravessava o patamar de pedra da casa do pescador, e descansava vagarosamente sobre a mesa a rabeca e o chapéu de feltro de copa alta.Ângela e Rosalina correram ao encontro do recém-chegado.– Boa noite, Rosalina! Como passou, mãe Ângela?As duas responderam familiarmente a este cumprimento.– Senta-te aqui, Miguel – disse Rosalina, arrastando uma cadeira de pau, enquanto do fundo da casa, um cão, uivando amigavelmente, veio cheirar os pés e as mãos do artista. Fica visto por esta recepção que aquela visita não era novidade para nenhum dos três.Miguel sentou-se, sem cerimônia, ao lado de Rosalina; Castor, o cão, veio deitar-se-lhe aos pés, encostando-lhe humildemente a cabeça nas pernas.Depois de algum silêncio, entabulou-se entre os dois moços uma dessas conversações fúteis .e agradáveis, cujo segredo só possuem os namorados. Falavam baixo, descansados e desapercebidos de tudo; falavam nimiamente por se ouvir um ao outro, com o egoísmo dos amantes, mas sem afetação nem constrangimento.Qualquer coisa que dizia Miguel, tinha muita graça para Rosalina. O menor gracejo do artista fazia-a mostrar os dentes claros e a língua vermelha em uma das suas francas e sadias gargalhadas.– Tocas-me hoje o teu Sonho? – perguntou ela, em seguimento da conversa.– Tocarei, depois da leitura, mas trago-te uma música nova.– Feita agora?– Concluída hoje; já estava principiada há mais tempo.– A quem é dedicada?– Que pergunta! A quem poderia ser?– A mim! – disse Rosalina, feliz.– E sabe como se chama? – perguntou Miguel.– Como é?– Teu nome!– Rosalina?– Não! Teu nome!– Ah! – fez rindo a moça. – Já sei, o nome é: Teu nome!– Exatamente!– Ora! O que se chama, Teu nome, por bem dizer não tem nome.– Tolinha!… Queres que o mude?– Não!… – disse meigamente sorrindo Rosalina.– Então! Senhor Miguel! Não temos hoje leitura? – perguntou Ângela, colocando a mão aberta sobre os olhos para poder enxergar o interrogado.Este respondeu, levantando-se e indo tomar um livro de um armário de pau, pregado na parede; depois, assentou-se defronte da velha, que, junto à mesa, cosia ao clarão da luz do azeite.Rosalina foi reunir-se ao grupo. Reinava o mais absoluto silêncio.Miguel abriu com pachorra o livro, no lugar marcado por uma tira bordada, trabalho delicado de Rosalina, esfregou carinhosamente as palmas da mão nas folhas do livro, aberto de par em par; cruzou as pernas, enterrando os pés para baixo da cadeira, em que estava assentado; espevitou o pavio da candeia, e depois de fitar abstratamente a cabeça branca de Ângela, principiou, com a voz sonora e desembaraçada, a leitura de uns contos fantásticos, que faziam o enlevo da velha e de Rosalina.A isto sucedeu completa tranqüilidade.Com o interesse do romance, Ângela parara maquinalmente o trabalho e, firmando os cotovelos descarnados na madeira da mesa, ficava automaticamente a fitar, com o rosto apoiado nas mãos compridas e ossudas, o movimento regular dos lábios do leitor.Dominada, como estava, pela mágica influência do livro, ligava indistintamente não sei que relação entre a fisionomia expressiva de Miguel e o assunto da novela; parecia-lhe que aquilo eram palavras e pensamentos dele, ditos e pensados ali, naquele instante; às vezes sentia vontade de abraçá-lo, quando a passagem lhe agradava, e ao contrário, revoltava-se, interiormente, por amor das transcendentes maldades dos tiranos do romance.Choravam e riam silenciosamente as duas, conforme a situação. Tudo era interesse; até o próprio Castor parecia tomar parte na leitura, sofrendo resignado a vontade de ladrar contra as ruidosas lufadas do vento; ficava o pobre animal com a cabeça estendida e o olhar mole e sensual, a bater com a cauda de um para outro lado, com a uniforme oscilação de uma pêndula.No meio deste silêncio, a voz grave e compassada de Miguel ecoava monotonamente nas quatro paredes de betume cinzento.Terminada a leitura, conversavam os três sobre o enredo e o caráter dos personagens, que figuravam no romance, cujo desfecho Ângela com muito empenho profetizava.Em seguida, Rosalina foi buscar a rabeca e Miguel executou expressivamente várias músicas de sua imaginação, não se esquecendo da última – Teu nome, que muito arrebatou e comoveu aquela a quem foi oferecida.Com efeito desvanecia-se a rapariga com ser a inspiradora de tão belas concepções, e ficava enlevada, como a sonhar, bebendo pelo coração as melancólicas harmonias, que manavam do instrumento apaixonado.Assim fugiam as horas tranqüilas e esquecidas da visita, até que os sinos de S. Tiago tocavam o silêncio; então descontinuava-se o recreio: Miguel despedia-se, beijando a mão da velha e a fronte da moça, e, depois de tomar o chapéu e a rabeca, partia cabisbaixo.Ao sair o músico, fechavam logo a porta; a luz desaparecia da sala e as duas mulheres recolhiam-se para o mesmo quarto, onde rezavam e dormiam juntas; tudo isto era feito com cuidado e devagarinho, como se tivessem medo de acordar com o barulho a felicidade que se lhes agasalhara em casa. Nas noites em que Miguel se demorava ou não ia como de costume, sentiam-se as duas mal e impacientes, e Rosalina encostava-se, então, cantarolando, às ombreiras da porta, e derramava, de vez em quando, um olhar de tristeza pela brancura do caminho. Enfim, o rapaz era já como pessoa da família; era, pelo menos, uma necessidade para ambas.Aos domingos de primavera, o sol ao levantar-se às cinco horas já os via de pé e em caminho para a

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Uma Lágrima de Mulher | Capítulo 04 E 05

4 Mal raiara a aurora triste e descorada do dia da viagem, já de pé dispunha-se a família para descer ao porto do embarque.Aí chegados, o pai apertou nos braços a filha; duas lágrimas grossas e varonis, como verdadeiros intérpretes da linguagem muda e sincera do amor, abriram-lhe caminho pelas faces tostadas.E, enquanto Rosalina esfregava os chorosos olhos com as costas da mão esquerda, Ângela, meio afastada, resmoneava a oração favorita, a cobrir de bênçãos o querido aventureiro.Não tinha ainda o sol enxugado da umidade os rochedos, que durante a noite receberam chuvas contínuas e carregadas, já uma vela minguava ao longe da baía, confundindo-se com o claro-escuro das águas. 5 Cinco meses depois da partida do pescador, o tempo atirou aos habitantes da ilha um domingo, que se podia chamar a obra-prima de março.Só pode ser verdadeiramente apreciado o domingo por um artista, um operário, um estudante ou outro qualquer filho legítimo do trabalho e que a este dedique toda a semana. Os amados da fortuna e bastardos do suor, que vivem paulatinamente dos seus calados rendimentos, têm sete domingos na semana e não logram conseguintemente o melhor e o mais legítimo dos prazeres – o descanso. Para poder descansar é preciso principalmente uma coisa – cansar. Do que se conclui que o domingo existe e pertence exclusivamente a quem ocupa utilmente os outros dias.A ilha apresentava um aspecto realmente encantador.Por toda parte dançavam e cantavam grupos alegres de homens sadios e mulheres bonitas ao som da guitarra e do pandeiro.À missa da manhã não faltou habitante de Lípari, que prezasse o seu caráter tradicionalmente religioso. Encontravam-se os namorados, trocavam-se meias palavrinhas de ressentimento e ciúme, quando não de amor, e, lá muito a furto, o noivo roubava às faces morenas e coradas da sua conversada um suspirado beijo.Os sinos da Igreja de S. Tiago repicavam o termo da missa.Era muito de ver os moços, com as suas roupas domingueiras, perfilados à porta da igreja, aguardando a saída das suas prediletas namoradas; e para logo surgir, ao calor metálico do bronze, uma onda sangüínea de mulheres frescas e fortalecidas, procurando, com os olhos inquietos e enfeitiçados, os daqueles que as esperavam.Assim apareceu Rosalina, cujos amarrotados da saia denunciavam o muito que estivera de joelhos.Vinha um tanto aborrecida e fatigada: os olhos pareciam mais úmidos que de ordinário e os movimentos mais demorados, as faces enrubescidas pelo calor da igreja, a ligeira transpiração, que lhe borrifava o lábio superior e o nariz, davam ao moreno aveludado de sua tez os tons leves e palpitantes, cujo segredo só possuiu Murilo, quando, pintando a cabeça da virgem, reproduzia a beleza angélica de sua filha.Trazia saia curta de pano escuro e grosseiro, deixando ver o começo de umas pernas bem-feitas e terminadas por dois sapatinhos pretos de fivela e laço. O seio arfava-lhe sob a pressão do tecido rijo de barbatanas de baleia, que armavam um corpete de lã vermelho, muito justo e melhor talhado. Os cabelos, de tal negrura, que levantariam ao sol reflexos de azul- ferrete, destacavam-se do quadrado de linho branco, que lhe toucava cuidadosamente a fronte e reapareciam mais abundantes no pescoço em forma de duas reforçadas tranças.Estava cansada. – Que a deixassem! Queria desafrontar-se daquelas roupas; e, passeando os olhos pelos grupos multicores dos rapazes no vestíbulo, parecia procurar alguém com certa impaciência.Mal dera alguns passos sorrira. Os lábios sempre anunciam rindo, quando os olhos acham quem o coração procura.Com efeito, um moço, saindo da multidão, acercou-se dela.Era um belo rapaz. Esbelto e destro, olhar sombrio e ardente, agradável expressão de amargura na fisionomia, e suma confiança desamparada nos movimentos. Tinha uma cabeça escultural, modelada pelo tipo quase extinto da raça etrusco-pelágia.Como os mais vestia um jaquetão de veludo com mangas compridas e abotoadas, calções justos e claros, enfeitados de fitas na junção com a meia listrada, camisa de lã, aberta no pescoço.Chamava-se Miguel Rizio. Filho de um músico romano, dedicara-se à arte do pai com algum êxito até aos doze anos. De repente, viu-se órfão e sem apoio, ficando-lhe, como derradeira consolação, a sua querida rabeca, única que no viver miserável de lazzarone, a que o condenara a miséria, não o desamparou jamais. Dormiam abraçados, muita vez, pelos alpendres, quando lhes faleciam o teto e a cama.Um belo dia conseguiu fugir para Roma e lá, melhorando a arte, melhorou também os meios de subsistência.De volta à ilha, sua pátria, encontrava-se aos domingos com Rosalina, e desde então, apesar da meninice da pequena, amou-a ele, quase tanto, quanto à sua rabeca.E ela? Valha-a Deus! Por esse tempo nem se lhe dava dos amores do músico.Quem se deu foi o pescador. De uma feita, desconfiou dos olhos ardentes de Miguel, e, cravando neles os seus, não menos ardentes e mais ferozes, fê-lo desde aí experimentar, a despeito da precoce energia de seus dezenove anos, um não-sei-quê desagradável, que o obrigava a evitar sempre o pai de Rosalina.Agora, ausente este, o moço sentia-se livre e feliz, e nestas circunstâncias deu com franqueza o braço a Rosalina, tomando alegremente o caminho de casa, que não ficava longe.A boa Ângela protegia os inocentes amores da pupila, amores novos e superficiais para ambas, que apenas há dois meses o sabiam; enraizados, porém, e velhos para Miguel, que de há muito consumia noites e esperanças a cismar na filha do seu gratuito e maior inimigo.Caracteres angélicos como o do artista sabem e podem amar não com esse amor sensual e grosseiro, cheio de desejos, que estiolam o coração e os sentidos dos filhos das grandes capitais, mas com essa fragrância singela, comparável ao perfume da violeta e que se pode chamar afeto, religião ou mesmo fanatismo. Não a amava ele porque a desejasse, senão porque a sentisse em toda a sua individualidade; nele tudo se poderia extinguir, menos esse sentimento, que o acompanhava como uma qualidade inerente à sua matéria. Quanto mais procuravam evitá-lo, quanto mais obstáculos levantavam à sua passagem, quanto mais faziam por pisá-lo, mais forte rescendia esse afeto, semelhante às

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Uma Lágrima de Mulher | Capítulo 1 ao 3

abertura Numa das formosas ilhas de Lípari branquejava solitária uma casinha térrea, meio encravada nos rochedos, que as águas do mar da Sicília batem constantemente. Ao lado esquerdo da modesta habitação corria uma farta alameda de oliveiras, que, juntamente com os resultados da pesca do coral, constituía os meios escassos de vida de Maffei e sua família. O pescador enviuvara cedo. Do amor ardente e rude com que o embalara por dez anos uma formosa procitana por quem se apaixonara, restava-lhe, como recordação viva da extinta mocidade, como um beijo animado da felicidade que passou, uma alegria de quinze anos, uma filha querida, meiga e delicada como o afago de uma criancinha. Ela o adorava. Enchia-o de beijos e ternuras; era como um rouxinol a acariciar um tigre. Nas tardes melancólicas do outono, quando se assentavam ao sol no terreiro, contrastava com a bruteza do peito largo do pescador a engraçada cabeça de Rosalina, que se debruçava sobre ele. Completava a pequena família de Lípari uma boa e religiosa velha dos seus cinqüenta anos, ama, criada e amiga; Ângela era, ao mesmo tempo, a mãe adotiva da filha de Maffei. Rosalina era encantadora. Como em quase todas as meninas italianas, adivinhavam-se-lhe os elementos de uma mulher bela. Difícil seria vê-la alguém, sem prender o coração naquela graciosa liberdade de movimentos; ouvi-la, sem guardar na memória, como uma relíquia sagrada, o seu falsete de criança. Há quinze anos adormecia cedo e levantava-se antes da alva, sempre rindo e cantando; nunca uma tristeza real lhe havia nublado a transparência azul de sua alegria. parado em meio uma das suas sadias gargalhadas. Amor, que não o da Madona ou o da família, jamais lhe entrara no coração; e contudo, nos últimos meses dos seus quinze anos, caía, às vezes, num cismar de tristeza indefinível, quando, de sobre a penedia, contemplava sozinha a extensão melancólica do mar; sentia em tais momentos como vagas inquietações, que se lhe debatiam por dentro e procurava, tolinha! com insistência pueril, arrancar do oceano o segredo de tudo aquilo; parecia-lhe que o ar misterioso das águas vedava ao seu entendimento o verdadeiro motivo dos seus anelos. Inexperiente, atribuía-os à vontade de viajar; nunca saíra da sua pequenina ilha e essa, apesar da beleza do céu, dos perfumes, das florestas, das sombras das oliveiras, do amor paterno e da dedicação de Ângela, enchia-a de tristeza e melancolia. Aos domingos costumava ir à missa e embalde o aprendiz ou o operário se paramentava com o seu gorro novo; a filha do pescador, logo em deixando os trajos domingueiros, nem mais se lembrava do moço, que a cortejara sorrindo, ou do singelo galanteio de algum dos do mesmo ofício de seu pai. Nem por isso deixavam de querer-lhe, pois nas rodas divertidas dos alpendres, enquanto dançavam e riam cantando a Tarantella, ao som das gaitas de foles, Rosalina não era esquecida, e até muito de coração lamentavam a mania do velho Maffei de não consentir que a pequena fosse aos domingos bailar e brincar nos seus folguedos. 2 Principiava a declinar o mês de outubro, e já o inverno abria cedo os portões da noite. O céu betumado por igual de um cinzento chumbado e sujo, peneirava de vez em quando uma poeira d’água, que se precipitava na lâmina polida do mar, como se milhões de flechazinhas microscópicas crivassem o escudo enorme do fabuloso gigante marinho. Das águas, mortas e sombreadas pelo azul-escuro da noite, levantava-se o torrão vulcânico da ilha, desenhando fantasticamente no fundo plúmbeo do céu os contornos negros das oliveiras. As duas vidraças iluminadas da casa de Maffei fitavam da treva as ilhas vizinhas. Do lado oposto da ilha, os pescadores lançavam, cantando, as redes ao mar, e o som monótono das cantigas chegava esfacelado e trêmulo, como o reflexo dos seus archotes nas vagas. 3 Ia adiantada a noite. A serenidade aparente da casinha branca contrastava com a agitação interior. Extraordinário deveria ser o fato que tinha, tão desacostumadamente, despertos até tarde os seus pacíficos moradores. Entanto o bulício crescia lá dentro: iam e vinham de um para outro lado, procurando, influenciados pelo silêncio, que a noite só por si impõe, abafar o som dos passos e das vozes, como se tivessem vizinhos ou pudessem incomodar alguém. Em tudo respirava uma impaciência surda; as andorinhas, pouco habituadas com o rumor,  espreitavam curiosas e assustadas por entre as ripas com as suas cabecinhas pretas. Apesar de velha e magra, Ângela era forte e sadia: atarefada, emalava ferramentas e movia fardos com facilidade; Rosalina, por outro lado, dobrava e empacotava roupas e afivelava malas prontas. Tratava-se sem dúvida de alguma viagem. Maffei era o único que não parecia preocupado com o que se passava; de natural sombrio e reservado não se mostrava inquieto: imóvel, numa cadeira de pau, com o dedo grosseiro entre os dentes, dividia e somava mentalmente umas parcelas imaginárias. Saíam-lhe inarticulados da boca sons aproveitáveis só para ele; ao resolver qualquer questão, deixava cair sobre a mesa de nogueira o punho cerrado, e com o ruído as duas mulheres voltavam rapidamente a cabeça; a imobilidade do pescador tranqüilizava-as, e ele continuava entregue inteiramente ao seu cogitar. Efetivamente, preparava-se uma viagem. Maffei partia no dia seguinte para Nápoles, empregado numa companhia, que se propunha continuar em Rezina a exploração das famosas ruínas de Herculano. Decorria então 1838, e nessa época as ambições voltavam-se abertamente para Rezina, onde centenas de operários e trabalhadores, lutando dia e noite, ou eram vítimas da sua cobiça ou triunfavam ricos e vitoriosos da luta desigual, travada por eles, com as lavas, que vomitara um dia o Vesúvio e setecentos anos petrificaram. Seduzido pela fortuna, ia o pescador deixar a filha; o gênio aventureiro e especulador não lhe permitia avaliar o alcance da empresa. Bem conheciam as boas mulheres o caráter de Maffei, e por isso mesmo não arriscavam uma única palavra para o dissuadir. Para ele, nunca as coisas estavam bem no pé em que se achavam. Era sempre preciso melhorar. Tinha

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A Intrusa | Capítulo 21 (FINAL)

Chegara a hora da prestação de contas. Argemiro escrevia à secretária, quando Alice entrou na sala. Como da primeira vez que se falaram, ela ficara contra a claridade, encolhida no seu vestido de lã barata, escura, e com o véu descido até o queixo.Estava pronta para sair; esperava ordens…Argemiro remexeu nos papéis. Abriu um caderninho dos assentamentos do mês, que ela lhe mandara somado e com saldo. Sem saber porquê, Argemiro sentia-se embaraçado, e foi com certa timidez que convidou a moça a sentar-se.– Estou bem…– Não; sente-se.– Obrigada…Ela parecia querer ficar em pé, pronta para fugir! Ele gaguejou:– Então…Evidentemente não sabia como principiar. De repente:– Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora entendesse tanto de contas… é um guarda-livros! Contudo… parece-me encontrar aqui um pequeno engano…Alice aproximou-se, com um arrepiozinho de susto. Ele, indicando-lhe uma cadeira, a seu lado:– Tenha a bondade de somar…Ofereceu-lhe a pena, que ela mesma molhou no tinteiro. Estavam sós. A casa em silêncio.Alice sentou-se, com aflita curiosidade, e levantando o véu baixou os olhos para o caderno, recomeçando a somar parcelas indicadas. Entretanto, ele contemplava-a pela primeira vez. Era mais bonita do que pensava; tinha a pele suave, os olhos pestanudos e o cabelo escuro e abundante…A mão esguia, branca, movia-se sobre o papel num leve tremor nervoso. Argemiro pensava:“Fui um estúpido; eu deveria ter apressado este instante. Ela é deliciosa!” E aspirava num deleite o aroma que vinha dela, aquele cheiro de cidrilha, de malva, ou flor de fruta e que constituía já uma das suas necessidades.Alice corava intensamente. Não atinava com o erro!– Não acho… – confessou por fim.– Entretanto, ele não é pequeno…Alice levantou com espanto os olhos para Argemiro; ele fixou-os com ternura. Estremeceram ambos.Ela tornou a baixar a vista para o caderno. Letras e cifras dançavam estonteadoramente.Argemiro percebeu-lhe a comoção. Bem dissera a sogra! E com alegria:– Quer que lhe aponte o engano?– Se faz favor…– Está aqui!Argemiro apontou para a verba que representava o ordenado da moça, apressando-se em continuar:– A senhora reduziu esta quantia…– Foi o que nós combinamos!…– Combinamos o dobro.– Afirmo-lhe que não.– Devo-lhe muito…– Não me deve nada.– Tê-la-ei ofendido?– Não…Estava ele outra vez encalhado. Nem para trás nem para diante, sem saber que dizer, todo olhos para o rosto, que já desaparecia sob o véuzinho bordado.– D. Alice!A moça respondeu com um olhar tímido.Ele calou-se. Parecia-lhe impossível aquela estupidez!– Então a senhora vai-se mesmo embora…– É preciso.– Se Glória lhe pedisse para ficar… Ela é tão sua amiga…– Nem assim…Argemiro levantou-se e disse com voz grave e resoluta:– Tem razão. O seu lugar não é aqui, agora que a vi e a conheço. Só lhe peço uma coisa: que me consinta ir amanhã à sua casa, em companhia de minha filha… pedir-lhe perdão…Alice esboçou um gesto de protesto. Receava chorar se falasse.Ele aproximou-se e ficaram ambos calados, adivinhando-se através do silêncio, até que Maria da Glória gritou da porta:– D. Alice! o Feliciano já levou a sua mala! Dois meses depois, numa linda manhã, os barões assistiram ao casamento de Argemiro e de Alice, feito por Assunção, testemunhado por Adolfo Caldas, Teles e d. Sofia.A cerimônia foi simples e sem lágrimas. A baronesa conteve-se. Muito pálida, dentre as sedas negras do vestido, ela adquirira pelo esforço enérgico da vontade uma rigidez de estátua. Nem um músculo das faces lhe tremia. Com as mãos pousadas nos ombros da neta, ela parecia olhar para tudo como do alto de uma torre, imperturbavelmente.À tarde Assunção foi visitá-la. Tinham voltado à chácara do subúrbio. Glória correu a recebê-lo no portão. Estava decidido que ela viveria ali uns meses, para consolar a avó. Achava agora tudo tão bonito! O avô lá andava no horto, verificando o estado das suas plantas, alegre como um patinho na água! Ela estava por ali à cata de mangas maduras…Assunção acariciou-lhe a cabeça e entrou sozinho na saleta da baronesa. Ela ali estava no seu cantinho costumado, febril, com o corpo alquebrado, descaído, os olhos avermelhados entre as pálpebras empapuçadas. Vendo-o, chamou-o a si; e segurando-lhe as mãos, numa queixa soluçada:– Minha filha tornou a morrer hoje, Assunção; agora está só comigo e eu vou perdendo as forças para chorar…– Não a chorará sozinha… – murmurou ele quase em segredo, corando. Ela voltou-se, e contemplou-o num misto de esperança e de assombro.– Você?…Ele olhou silenciosamente para a batina, como para explicar tudo.Transfigurada, num movimento inconsciente, alegre, ela apertou-o nos braços e exclamou:– Meu filho!

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Rolar para cima