Tarde de Clássicos

A Intrusa | Capítulo V

Argemiro ouvia um constituinte no seu escritório da rua da Quitanda. A causa era chocha; o homem expressava-se mal, perdendo palavras sobre palavras. O advogado deixava-o falar, olhando silencioso para os raminhos azuis do papel reles, como se pedisse às paredes encardidas a paciência de que deviam estar impregnadas.Efetivamente, toda aquela casa, onde o cupim voraz trabalhava de parceria com os médicos especialistas, advogados e solicitadores, parecia derrear-se ao peso da sabedoria e da malícia.À noite, fechados os escritórios e cubículos, os ratos, passeando por aqueles corredores e alcovas desertas, comentariam as chicanas, as mentiras e os segredos com que a ciência transfigura a verdade e uns homens enganam os outros… E não seriam poucos os ratos, porque às vezes, mesmo em plena luz do meio-dia, surgia de qualquer canto obscuro o focinhito agudo de um desses roedores mais curiosos, como a querer tomar contas do que se passasse; e a sua morrinha vagava na casa, de frente a fundo, enchendo-a como uma alma.O constituinte de Argemiro voltava ao princípio da sua exposição; temia ter esquecido algum detalhe precioso, e a consulta era cara… Foi num desses pontos de repetição que o criado apresentou ao advogado um cartão da Pedrosa.– A mulher do ministro!Argemiro abotoou o colete de fustão e prometeu ao homenzinho que faria tudo por ele, mas que se fosse embora!…O outro atropelou as últimas perguntas e marcou nova entrevista.Através da meia parede de tabique ouvia-se, na sala próxima, o frou-frou das sedas abafadas em lãs e um sussurro de vozes femininas. Logo, a Pedrosa não viera só… Argemiro não a via desde a noite em que fora cumprimentar o marido pela sua nomeação. Que a traria ali?O aroma do Bouton d’or introduzia-se pelas frinchas das portas, invadindo tudo, soberanamente.Argemiro considerou aquele aroma como muito indiscreto, mas gostou.A Pedrosa afinal… Ora, com que então estava no seu escritório a mulher do ministro!… ele ajeitou o nó da gravata e foi recebê-la à porta. Ela entrou logo, com o olhar repreensivo, o busto empertigado e um sorriso amigo na boca descorada. Atrás dela vinha a filha, muito espigada, mais alta que a mãe, com um arzinho petulantae no rosto claro, de feições miúdas.– Seu mau! então é preciso que a gente o venha ver aqui?!– Oh, minha senhora…– Não se desculpe, nem me agradeça a visita.Daí rompeu a falar, queixando-se de não ter o marido um minuto de descanso que lhe permitisse tratar dos seus negócios particulares, vendo-se ela na contingência de intervir, como fazia agora, a contragosto… Ia consultar o advogado e o amigo…Argemiro agradeceu.Enquanto a Pedrosa remexia na sua bolsinha de camurça, procurando um documento qualquer, o advogado olhou para a Sinhá, que não desviava o olhar de cima dele, numa expressão perturbadora, de mulher amorosa.“Diabo!” – pensou ele consigo.A consulta representava um pretexto. O negócio dispensaria a intervenção do advogado; todavia, a Pedrosa parecia não se importar de passar por estúpida; repetia as perguntas com uma dificuldade de compreeensão que dava tempo à filha de espichar a alma pelos olhos afora.Mas o coração do viúvo parecia fechado a sete chaves e duro como uma pedra. Sinhá levantou- se, deu um giro pelo escritório, riu, falou, interrompeu a mãe e sentou-se depois mais perto de Argemiro, deixando-lhe cair de encontro a um joelho, por descuido, a sua linda sombrinha de seda e rendas brancas.Como o assunto da consulta já não desse de si, a Pedrosa embarafustou por outras portas: as últimas récitas do Lírico, o jantar do presidente, o casamento do Ângelo Barros… aquele Ângelo que dizia ter feito também o juramento de ficar solteirão!E, a propósito, a Pedrosa perguntou ao Argemiro quando teria de assistir ao seu…– Eu já me casei, minha senhora…– Sabemos; mas ser viúvo é como ser solteiro…– Estou velho…– Pois sim, a verdade é que eu conheço mais de uma moça bonita que se daria por feliz se o senhor a escolhesse… Olhe, na festa da apresentação de Sinhá, houve uma que ficou enfeitiçada pelo senhor.Mãe e filha trocaram um olhar e riram alto. Depois, a Pedrosa continuou:– É raro o homem que enviuva que se não torne a casar; o que é a melhor prova a favor das mulheres… Ora, o seu coração por que há de ser mais insensível que os dos outros? Um segundo casamento é ainda uma homenagem ao primeiro… Só procuramos repetir os atos que nos trazem felicidade…– Será assim, mas o meu coração é pequeno para as saudades que tenho. Está todo ocupado pela minha morta…Sinhá levou o lenço ao rosto e uma nuvem de Bouton d’or adejou pela feia sala do escritório.Argemiro percebeu o movimento e deliciou-se com o aroma. Que significaria aquele gesto? Colheria o lenço uma lágrima ou disfarçaria um sorriso? Seria ele realmente amado por aquela criança, ou simplesmente preferido por aquelas mulheres como um marido de posição? Deveria ter pena, ou deveria ter nojo?Ah! a pobre Sinhá talvez não tivesse culpa; quem era odiosa era a mãe, que assim o vinha provocar no lugar do seu trabalho arrastando pelos degraus carunchosos daquela casa de homens, a sua filha solteira, apenas saída do colégio! Mas a verdade era que o olhar da pequena perturbava-o, mais pela sua expressão, que pela sua fixidez. Obedeceria ela à sugestão da mãe, ou agiria a mãe em obediência a uma súplica da flha? Argemiro, apesar de lisonjeado na sua vaidade de homem, começou a desejar a saída das duas senhoras; mas a Pedrosa não parecia apressada e entrou pela seara da política, como entrara pela do amor. Acertou no ponto de fascinação. Ela estava bem informada; Argemiro abriu ouvidos curiosos e dobrou-se na cadeira para escutá-la de mais perto. Ela era indiscreta, por ser com ele… pedia segredo de algumas afirmações, mostrando-se de vez em quando em oposição a atos do marido…– Pedrosa morre por servi-lo em qualquer coisa… veja se inventa um pedido, para contentá-lo…– concluiu ela, levantando-se com um arzinho malicioso nos olhos espertos.Sinhá imitou-a, quebrada de languidez, como desanimada…Argemiro observou-a de face;

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A INTRUSA | Capítulo IV

CAPÍTULO IV Num belo sábado, o Barão do Cerro Alegre trouxe a neta à cidade e foi depô-la no escritório do pai, que a esperava, já impaciente. O velho não se demorou; tinha horror às ruas abafadas e às feias salas dos escritórios. Mostrava-se mesmo apressado em se desembaraçar da incumbência, temendo ser cúmplice em algum desastre que acontecesse a Maria, que via cercada de perigos, sempre que saía da sua chácara. Ainda assim, não se pôde conter e recomendou ao genro:– Dizem que por aí há muitas febres… é preciso ter prudência! A avó pede-lhe que não deixe a Maria comer doces na confeitaria. Ela pode abusar, é gulosa…– Vá descansado; e obrigado!Enquanto Argemiro despachava uns papéis, Maria ora se debruçava na sacada, ora remexia todo o escritório do pai.Mas Argemiro tinha pressa também de atravessar as ruas com a sua Gloriazinha pela mão, e abreviou o trabalho. Saíram; e as recomendações dos pobres velhos foram absolutamente esquecidas… Maria da Glória agarrou-se ao pai, atordoada com o burburinho do povo com que ia esbarrando; aquilo alvoroçava-a sem diverti-la, mas a pouco e pouco, a cada paragem para uma conversa de minutos, em que os amigos do papai lhe beijavam a mão, como a uma princesa, acordava nela uma curiosidade estranha por esta vida da cidade, tão embaraçada de enleios. Queria ver tudo, retinha Argemiro em frente das vitrines, embarafustava pelas lojas; e como via em exposição muitas coisas que não tivera nunca, exigia-as do pai, que, dócil como a cera mole, ia comprando tudo, sentindo-se ainda feliz por satisfazer assim a sua Maria, só dele, nesse sábado bendito.Quando chegaram às Laranjeiras, o pai subiu logo para o seu quarto e recomendou a Glória que esperasse na sala Alice Galba, a quem mandou avisar, pelo Feliciano, que viesse receber a menina.Maria recostou-se no sofá, esmagando no estofo as papoilas do seu chapéu à jardineira. A antipatia da avó sugerira-lhe instintiva repugnância por essa intrusa, como chamavam lá em casa a governanta das Laranjeiras. Ah, mas Glória tinha o seu plano, não deixaria que a outra tomasse confiança consigo. Uma alugada, uma mercenária!E dava-se ares de grande dama, muito atirada sobre os almofadões de pelúcia, com uma expressão de desprezo afeiando-lhe a boca e as suas faces rosadas, de criança. Realmente aquela atitude não era agradável, o chapéu sobretudo incomodava-a mortalmente, e sentia enterrar-se-lhe nas costas, como um castigo, a ponta de um alfinete. Suportou o sacrifício heroicamente, até que viu entrar na sala, com o modo mais simples e desembaraçado do mundo, uma moça, nem bonita nem feia, vestida de cinzento, com aventalzinho preto e um molho de chaves pendentes da cintura.Glória empertigou-se mais. Alice aproximou-se dela sorrindo e estendeu-lhe as mãos, duas mãos muito brancas e longas. Glória levantou-se, sem se dignar tocar nessas mãos, e disse com aspereza:– Quero ver o meu quarto.Alice contemplou-a com tristeza e curiosidade; depois, voltando as costas:– Siga-me…Atravessaram o corredor, subiram uma escada e entraram em um quarto forrado de azul, com janelas abertas para os lados do Silvestre e duas camas brancas.– É aqui?!– É aqui.– De quem é esta cama?– Sua.– E aquela?– Minha.– Eu quero dormir sozinha; não sou medrosa. Arranje outro quarto para mim. Agora, tire-me o chapéu!Glória sentou-se na cama, brutalmente. Alice tirou-lhe o chapéu e endireitou-lhe o cabelo. A menina foi ao espelho, achou-se bem penteada e lá no fundo da sua consciência concordou que jamais sentira pousar sobre a sua cabeça mãos mais habilidosas. Voltando-se contemplou Alice de alto a baixo, e perguntou:– Quantos anos tem?– Vinte e três.– Parece mais velha.Alice sorriu.– Eu tenho doze…– Parece mais criança…– Hein?! toda a gente diz que já pareço uma moça! É míope?– Parece criança no juízo, minha amiguinha, e é por eu ver muito bem que lhe digo isto… Não seja má… venha lavar as mãos; seu pai espera-a para jantar; não está ouvindo o tímpano? É o sinal…Glória tremia, sem atinar com a resposta para semelhante afronta. Depois, num desabafo: – Você é muito grosseira!Alice apoiu-se às costas da cama e fechou os olhos.– Bem diz vovó: sempre é mulher de anúncio!– Quê?!Glória não respondeu, e correu, rindo às gargalhadas, para a mesa do jantar. Argemiro esperava-a de abraços abertos.– Ah! como a tua alegria me faz bem ao coração! Senta-te aqui e conta-me: por que te ris tanto?– Por nada… à toa!– À toa! como é bom rir à toa! Como eu preciso da tua inocência ao pé de mim! Ri sempre, meu amor!… Olha o guardanapo… Estás contente?… aqui tens o teu pãozinho… É a primeira vez que jantas sozinha com teu pai… que te parece? Olha a tua sopinha… Está a teu gosto?– Eu não quero sopa.– Estás sem apetite?– Eu não gosto de sopa.– Ah, aqui é preciso gostar de tudo, minha senhora! uma pessoa de educação nunca diz a uma mesa: – eu não gosto disto, eu não gosto daquilo… toma a tua sopinha… E agora dize-me: como achaste a D. Alice?– Horrenda.Feliciano sorriu, sorriu com tamanha indiscrição, que Argemiro repreendeu-o com um olhar.– Seja boa e é o que se quer… precisas tratá-la com delicadeza e amizade; ouviste? É graças a ela que te tenho hoje aqui… Queres vinho? muito pouco… com água… assim… Ora, a minha Glória! Tomara já ver-te moça e tomando conta definitivamente disto tudo, para ter-te sempre aqui… sempre!Glória, que recusara a sopa, comia agora com satisfação. O pai revia-se nela, todo contente.A mesa estava bem posta; desde que Alice entrara não deixara de haver flores e frutas ao jantar. Glória, confundindo a elegância com o luxo, exclamou:– Que mesa rica, papai!– Se viesses jantar comigo antes da D. Alice estar aqui, não dirias isso, embora na mesa estivessem as mesmas porcelanas e os mesmos talheres. Repara nisto, minha filha, que a arte e o gosto dão às coisas mais simples uma aparência de conforto e de alegria muito agradáveis à vida. A minha mesa era triste… agora é assim!Feliciano franziu as sobrancelhas, mal humorado.

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A INTRUSA – Capítulo II

CAPÍTULO II Era meio-dia quando um bonde das Águas Férreas parou à entrada do Cosme Velho e uma moça desceu para a rua, com ar vexado. O bonde continuou o seu caminho; ela consultou uma notazinha da carteira e entrou num prédio cor de milho, ladeado por um jardim em meio abandono. Um rapazinho lavava o vestíbulo; a moça olhou para ele ainda embaraçada e perguntou: – O dono da casa…? Felizmente, o pequeno não a deixou concluir; estava prevenido e gritou logo para dentro, fazendo correr uma porta de vidro que devassou um trecho do interior: – Ó seu Feliciano, venha cá! E voltando-se para a recém-chegada: – A senhora entre. Ela levantou cuidadosamente o seu vestido de lã preta, para que se não molhasse no chão encharcado, e atravessou o vestíbulo em bicos de pés. O rapazinho olhou e viu que ela levava as botinas esfoladas, tortas no calcanhar, e que tinha os tornozelos finos. Mal ela chegava à porta do fundo, quando apareceu um negro muito empertigado, com um arzinho desdenhoso e enfiado num dólman branco de impecável alvura. Ela repetiu a mesma frase e ele fez-lhe um gesto para que o acompanhasse. Seguiram por um corredor até o escritório do dr. Argemiro, que escrevia à secretária, no meio de um montão de papéis, muito atarefado, já pronto para sair. Feliciano avisou da porta: – Uma pessoa que vem pelo anúncio! O advogado levantou os olhos e viu entrar na sala uma figura meio encolhida, que lhe pareceu ter um ombro mais alto que o outro e cujas feições não viu, porque vinham cobertas com um véu bordado e ficavam contra a claridade. – Tenha a bondade de sentar-se… permita-me mais um momento e prestar-lhe-ei toda a atenção… Ela fez um gesto de assentimento e sentou-se perto da porta. Ele, bem iluminado pela claridade de fora, apressou as últimas notas, fazendo ranger a pena no papel. Chegada a vez de ordenar as folhas esparsas pela secretária e de acamá-las na pasta, para não perder muito tempo, foi dizendo: – Antes de mais nada, como estes anúncios reclamando senhoras para casas de viúvos são ambíguos e prestam-se a interpretações pouco airosas, digo-lhe desde já que preciso, para governanta de minha casa, de uma senhora honesta, a quem eu possa francamente confiar minha filha, que é uma menina de onze anos. Ela mora fora, mas deverá vir passar de vez em quando alguns dias em minha companhia… Sendo essa a condição essencial, não estranhará por certo que lhe peça algumas informações… Argemiro esperou um instante, a ver se ela se decidia a falar sem ser interrogada; mas ela, coitada, encolheu-se na cadeira e ele foi forçado a perguntar: – A senhora é viúva? – … Não, senhor… sou solteira… – Ah… mas já governou alguma casa, naturalmente? – Sim… senhor… – Bem… desculpe-me a minuciosidade. Poderá dizer-me em que casa desempenhou o cargo a que se propõe? Ela pareceu não entender; depois disse baixo: – Na minha… na de meu pai… – Ah!… O nome de seu pai é… – Meu pai morreu… e é por isso que eu… Houve uma pausa. Argemiro consultou o relógio. Era tarde. O diabo da mulher não serviria?! – Que idade tem? – Vinte e cinco anos… – É saudável? A saúde é também uma das condições que eu exijo. – Sou. – Pois, minha senhora, infelizmente tenho o tempo contado e não posso demorar-me. Vou procurar em poucas palavras fazer-me bem entendido; peço-lhe que me escute com a maior atenção e que me responda com absoluta franqueza. Como lhe disse, quero uma governanta para minha casa, que seja ao mesmo tempo uma companheira para minha filha nos dias em que ela vier ver-me. Para isso é preciso que essa governanta seja uma senhora séria, sobretudo educada, não digo instruída, mas que enfim não seja analfabeta e que tenha hábitos de asseio, de ordem e de economia. É absolutamente preciso pôr um dique à impetuosidade das minhas despesas domésticas. Eu não posso tratar disso. A senhora dirigirá tudo, com energia, de modo a regularizar as coisas definitivamente. Para isso lhe darei toda a força moral. Há uma cláusula, que talvez lhe pareça absurda, mas é indispensável na nossa situação, caso a senhora aceite as condições que estipulo… Ele parou, com ar interrogativo. Ela respondeu com um fio de voz trêmula: – Perfeitamente… – É esta: não nos vermos senão quando isso for absolutamente indispensável, ou melhor, não nos vermos nunca! A razão desta esquisitice, ou desta mania, não pode ser explicada por inteiro em poucas palavras; suponha, porém, que repousa só nisto: não querer eu que paire sobre quem deve velar por minha filha nem a sombra de uma suspeita! A minha casa é grande, tem dois pavimentos e eu passo o dia na cidade, só vindo jantar à noite. Na minha ausência toda a casa será sua; desde que eu entre a senhora saberá e poderá evitar-me. Acha isso possível? – Acho… – Concorda em que seja assim? – Concordo. – Pense na responsabilidade que vai assumir. – Já pensei… – Eu sou exigente. Quero sentir na minha casa a influência de uma pessoa moça, saudável e ordenada. Não quero ver essa pessoa, por motivos que expus e por outros particulares e que não vêm ao caso, como também já disse. Aviso-a de que sou comodista. A senhora julga-se com os predicados que apontei? – Julgo-me. – Tanto melhor; parece-me que nos entenderemos. Todavia, desejaria, repito, que me desse algumas informações a seu respeito. Como se chama? – Alice Galba. – Galba… tenho idéia de ter conhecido na minha infância um velho com esse nome… um botânico, se me não engano… – Era meu avô… – Então seu pai… – Meu pai morreu há dez anos… Argemiro puxou o relógio. Era a hora do bonde; levantou-se apressado, apanhando a pasta e o chapéu. – A senhora veio tão tarde! E temos ainda uma coisa a combinar: o ordenado? A moça levantou-se

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Capítulo I

CAPÍTULO I – Que temporal! – E um friozinho! Conhecem vocês nada mais gostoso do que ouvir-se o barulho da chuva quando se  está agasalhado? Eu estou me regalando…   – Sempre o mesmo egoísta! Como estás em tua casa… mas… desalmado, lembra-te de nós! São  quase horas de me ir recolhendo aos meus penates. E ali o padre Assunção, caso não fique pelo  caminho, terá também que marchar um bom pedaço a pé. Ao Teles, esse o bonde leva-o até o quarto de  dormir! Nasceu empelicado.   Por essa feia noite de chuva, conversavam em casa do advogado Argemiro Cláudio, no Cosme Velho,  o seu grande amigo padre Assunção, o deputado Armindo Teles e o Adolfo Caldas, homem de quarenta  anos, sem profissão determinada, mas muito bem aceito nas rodas políticas e literárias, que freqüentava  assiduamente.   Tinham jantado tarde, fumavam agora na biblioteca de Argemiro, sentados à mesa do pôquer.  Menos por virtude que por cansaço, padre Assunção não quisera tomar parte no jogo e andava pela  sala sacudindo o pano da batina a cada impulso das suas largas passadas. Era alto, magro, anguloso, de  uma cor pálida; e nas suas feições acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal  expressão de candura, que Adolfo Caldas costumava dizer:   – O riso do Assunção cheira a rosas brancas.   O dr. Argemiro, advogado, conforme rezavam os diários do Rio – dos mais distintos do nosso foro –  jogava por jogar, sem vivo interesse, só para pretexto de chamar os amigos à sua casa de viúvo e de lhe  dar uma palpitação de alma que lhe ia faltando…   “Ah! uma casa sem mulher, afirmava ele, é um túmulo com janelas: toda a vida está lá fora…” E  lembrar-se que aquilo havia de ser para sempre!   O dr. Argemiro Cláudio de Menezes, descendente direto dos Iglésias de Menezes, nobres de Portugal,  cujo solar brasonado existe ainda, bem que arruinado, naquele país, em terras limítrofes da Espanha, à  beira de um rio espelhento e de pinheirais perdidos, – era um homem ainda moço, robusto, de carnes  sólidas e uns olhos negros, em que talvez a raça árabe transparecesse ainda, adoçada pelo cruzamento  com a lusitana. A barba preta talhada rente ao rosto pálido, tinha já um ou outro fio prateado, e o cabelo  muito curto desenhava-lhe a cabeça redonda e forte. Tinha as mãos pequenas, a atitude preguiçosa, em  contradição à energia do tipo. Viúvo há sete anos de uma formosa senhora, cujo retrato aparecia em  todos os cantos da casa, ele protestara não tornar a casar-se.   A mulher, filha dos Barões do Cerro Alegre, levara-lhe a melhor porção da sua vida.  Do primeiro ano do seu casamento, que durara cinco, existia uma filha, Maria da Glória. Vivia esta  menina com os avós maternos, numa chácara dos subúrbios, e andava agora pelos seus onze anos e os  rudimentos de português e de música. Tanto como o pai e os avós, por ela se interessava o padrinho,  padre Assunção. Sem interromper a partida, o deputado Armindo Teles gabou-se:  – Foi hoje um dos dias mais belos da minha vida; não preciso de mais nada para julgar-me  compensado dos enormes sacrifícios que a deputação me tem custado… rios de dinheiro, noites de  insônia, descomposturas de outros partidos… de tudo colhi hoje o prêmio. Imaginem vocês que tive de  lutar renhidamente com o próprio governo, molestar colegas, ir de encontro mesmo a princípios que prezo de gratidão pessoal e de conveniência própria, e que, arrostando tudo, como um soldado na  guerra, consegui a minha vitória. Imaginem se não devo estar satisfeito! Uma vitória política, já o disse  Chartrier, embriaga melhor que o mais velho licor.   – Chartrier?… perguntou com curiosidade o padre Assunção.   Armindo Teles pareceu não ouvi-lo e continuou:   – Infelizmente temos agora na Câmara poucos talentos de combate. Carecemos de mais vivacidade…  A indiferença de uns e a má vontade de muitos enfraquecem os golpes de um ou outro mais entusiasta…  Eu cruzei as minhas armas, nesta porfia, com os maiores talentos da Câmara e feri-os a todos sem  piedade. Criei inimigos; pouco importa, mas triunfei!   Adolfo Caldas, levantando os olhos das cartas em leque na mão gorducha, indagou, sorrindo::  – Por que feito ilustre glorificaste a pátria?   – Pelo reconhecimento do Simão da Cunha, o meu colega Simão da Cunha, que a Câmara em peso  guerreava!   Sob o bigode de Argemiro passou a sombra de um sorriso. Adolfo Caldas impregnou de cândida  ingenuidade os seus maliciosos olhos castanhos e disse apenas, como a procurar:  – Cunha?…   E depois:   – Ah! o Simão! sim… é desempenado. Veste-se bem.   – Não é águia, afirmou Teles; mas é o que se chama – uma mediocridade operosa – e é, sobretudo,  um homem de bem!   – Isso em política não tem valor… comentou o dono da casa. – Mas que faz você aí, padre Assunção,  remexendo nas estantes?!   – Estou a ver se encontro algum livro de Chartrier…   – Olha, o catálogo dos livros deve estar naquela gaveta, se acaso o Feliciano já o não deitou ao fogo!  Eu já nem sei o que tenho…   – O que você deve procurar é os sermões do Padre Vieira! – disse malignamente Armindo Teles.  – Não preciso; sei-os de cor.   – Impinge-os como seus?   – Impingi-los-ia se os deputados fossem à igreja; mas você sabe, aos outros não… tenho medo que  percebam!   Riram-se todos. Teles retrucou:   – Ainda o hei de ver na tribuna parlamentar, padre!   – Talvez. Os cilícios fazem os santos… mas eu, humilde padre, encontraria quem se batesse por mim  com o mesmo denodo com que você se bateu pelo…?   – Simão da Cunha.   – Por esse senhor?   – Eu mesmo.   – Guarde as suas armas para melhor combate, amigo. Não tenho envergadura senão para um serviço  – o divino. Cá tem você um livro precioso, Argemiro.   – Qual é?   – Vida de D. Frei Bertolomeu dos Mártires.   Adolfo Caldas comentou:   – Soleníssimo! Que bela língua, reverendo!   – Formosa! Frei Luiz de Sousa tinha a quem

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