novembro 2023

A Intrusa | Capítulo XVI

Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade…As janelas de guilhotina, dos compartimentos superiores, viviam escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho infinito…Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por um casal de surdos- mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido, por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio, e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por aquele caminho de sacrifício.Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio do temporal.De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação, vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!E ei-lo um concentrado… um padre! Fora o colégio dos padres que lhe inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa, se o efeito ali estava e irremediável!Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso e a jovialidade dos netos!E o filho, desigual no humor, ora tímido, ora arrebatado, cresceu sob a sugestão desse sonho. O que lhe valia a ela era a amizade do Argemiro, que, mais velho um ano que o amigo, lá o entretinha com as alegrias do seu temperamento robusto. Eram vizinhos, estudavam no mesmo colégio, amavam os mesmos poetas, completavam-se pelas suas semelhanças e dessemelhanças.A amizade de Argemiro foi um alívio para d. Sofia. Bem percebia ela não bastar à felicidade do filho!Os dois rapazes viviam como irmãos!Passaram-se anos assim, até que um dia entraram ambos em casa, um radiante, outro constrangido. Que se passara? não o soube nunca; mas por mal dela o constrangido era o filho, que entrou a empalidecer… a não dormir… enquanto o outro prosperava! – Meu filho! que tens?– Nada…– Escondes-me alguma coisa!– Nada…– Quero-te alegre!– Mas eu estou alegre… acredite que estou alegre e que sou feliz. Era sempre o que ele afirmava.“Ele mente-me!” – pensava a mãe amargurada. E a sua obra, a alegria, a ambição de glórias que, durante tantos anos se esforçara por implantar no filho, sumia-se, derrocava-se, sem que lhe fosse possível, a ela, ampará-la para a reconstruir!– Ele mente-me…Ela queria-o franco, risonho, amigo da vida. Ele retraía-se, tomava ares abstratos, entregava-se a leituras filosóficas e a estudos incompatíveis com a sua idade. Ela não entendia bem daquilo, mas pressentia um perigo sem forças para o combater…– Ele mente-me…Era a sua amargura. O filho tornara-se de uma sensibilidade doentia; fugia da sociedade, evitava a própria mãe, que se encolhia chorosa, para o não aborrecer.Aos vinte e três anos viu-o morto com uma febre. E aos vinte e cinco – padre!Não o quis contrariar, não se podia opor. Ele lá teria uma razão diferente daquela que alegava e que ela espiara em vão!Não fora chamado por Deus ao sacerdócio, fora levado por uma causa estranha, mas inabalável.Sonhar! de que vale o sonho que não frutifica, flor que se esfolha e de que nem o aroma sequer permanece com suave consolação!Ela sacrificara-se para tornar aquele filho um vencedor, um homem! e ei-lo místico, retraído, isolado do mundo para que o destinara!Ela pedira-lhe uma nora, ele trouxera-lhe uma batina, e à sua indagação angustiosa:– Meu filho, que tens?!Respondia ainda:– Nada. Eu estou contente… Eu sou feliz!“Mente-me!” – pensava ela consigo, disfarçando as lágrimas.O que lhe valia era a amizade do Argemiro. Esse, sim, era um rapaz sólido, prático como ela desejara o seu…Ah, não se podia esquecer nunca! No dia em que Assunção, pálido e trêmulo, lhe confiara a resolução de ser padre, ela levantara para ele a mão, como no tempo de criança, em que se via forçada a corrigi-lo… Ele estendera-lhe a face, como Cristo; ela retraíra-se, desatando num pranto soluçado.Negava o seu consentimento; não queria! O homem não nasce para o celibato, mas para a família; a missão ensinada por Deus é a do criador! – afirmava.E toda aflita:– Mas, que determinou semelhante idéia, meu filho?– A vocação…– Não… não! Tens algum desgosto

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A Intrusa | Capítulo XV

Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de contentamento. Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos, esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro, aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas que alegravam a mesa.“Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa…” – pensava ele consigo. “Uma toalha bem limpa… umas flores orvalhadas… esmaltes de louças reluzindo… e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador… Amanhã, as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar…”– Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com certeza alguma alma do purgatório…– Talvez… mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra… Por toda a vastidão do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais… Eu tocava músicas solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se tornaria um dia possível tal ventura… Por que hão de vir tão tarde semelhantes sonhos?!– Para que se não realizem.– É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda… A arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula para as minhas febres…– Escreve…– A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago fechado à chave…– Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!– Nunca pensaste, por quê?!– Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.– Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução! – Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo… Ele será o meu confessor! – Tudo isso vai longe…– Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem… No meu sonho, esta madrugada, reviveram essas comoções… As imagens da catedral, todas de mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas que amei na minha adolescência e na minha mocidade… As melodias gloriosas que eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas, ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras… Não eram só vozes humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do seminário… o badalar do sino para a minha primeira missa… e o rugido das sedas de tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão… Nunca me esqueci… foi como um ruflar de asas… Pois a minha alma transportava essas impressões em largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas os homens mais felizes da Terra?– Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar… Quem sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa…– Pouco mais Que é isso?!– Nada…Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.– Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto na boca?– Nunca, respondeu o padre.– Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a copa. Assunção argumentou:– Está nas tuas mãos o remédio.– Despedi-lo?– Pois então?– Acabo por fazer isso mesmo. Realmente, não há nada como a ignorância para certa gente. Meu sogro fez de um moleque humilde, um homem ruim… Se em vez de o mandar para a escola, com bolsa a tiracolo e sapatinhos de botões, o deixassem na modéstia da cozinha ou da estrebaria, ele não teria agora nem a revolta da sua cor nem a da sua posição… O que o torna mau é a inveja e a sua ignorância mal desbastada.– Ele não é tão mau assim!– Defende-o agora!O Feliciano voltou com a sobremesa, um doce novo, desconhecido de ambos e que o copeiro não teve remédio senão confessar ter sido preparado por d. Alice, receoso de que ela o ouvisse por detrás das portas.Depois do café, ao entrarem os dois sozinhos para a biblioteca, Argemiro notou:– Foi o meu último dia de bem-estar. Reparaste? Nada faltou. É uma alegria, uma casa assim! E rara, eu sei, nas minhas condições, raríssima! Perfeita, a minha governanta! Se tem defeitos, nunca os deixa transparecer… Nem é possível que os tenha…– Estás doido! Ela é uma mulher como muitas; somente cuidadosa de não perder um emprego bem remunerado; mais nada.– A esta acusas!– Não. Esclareço-te. Jogaste uma cartada, foste feliz, dá-te por bem pago por estes largos meses de tranqüilidade. Supondo que tua sogra se incompatibilize com a d. Alice, acharás depois outra governanta nas mesmas condições. Esta é

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Tuhpanger | Episódio 07

Sobre a mesa ao lado da fonte de água da Aldeia Perdida, Maria Inês serve um bolo junto com pratos e talheres de metal. Todos os guerreiros e também Iara se reúnem ao redor da jovem portuguesa. O cheiro delicioso do bolo rouba a atenção de todos, a aparência dá a entender que o seu sabor deve ser divino. Decorado com fios de ovos e nozes por cima do chantili branquinho. — O que é esse doce? — perguntou Iara curiosa. — Um bolo. — respondeu Maria Inês sorrindo, orgulhosa de si mesa. — Um bolo? — perguntou Joaquim, o guerreiro vermelho. — Sim. — respondeu a guerreira amarela. — Vou participar de um programa de culinária na televisão e irei fazer essa receita, mas antes quis trazer para vocês provarem. — Ótimo! — disse Miguel, o guerreiro espiritual verde. — Vamos comer, eu adoro bolo. — Que sabor é esse? — perguntou Katarina, a guerreira azul. — Marta Rocha. — respondeu Maria Inês. — Marta Rocha… Eu gosto, apesar de ser muito doce. — disse Rafael, o guerreiro cor de rosa. — O que é isso, bolo? — perguntou o espírito indígena curiosa. — É uma sobremesa, Iara. — explicou Maria Inês. — Claro que você não deve conhecer porque se tornou protetora da aldeia anos antes da chegada do meu povo aqui. Bolo é uma mesa bem fofinha com recheio doce dentro, vou cortar um pedaço para cada um. Tenho certeza de que você vai gostar. Maria Inês corta as fatias de bolo e distribuí nos pratos, em seguida entrega cada um para os que estavam ali. Fica ansiosa esperando a resposta dos seus amigos. — Hmmm… — começou o guerreiro vermelho após comer o primeiro pedaço da sua fatia de bolo. — Esse programa que você vai participar, é uma competição? — Sim, por quê? — perguntei a guerreira amarela. — Porque com certeza você vai vencer! — responde Joaquim rindo. — Isso tá muito bom. — Sabe, normalmente eu não sou muito fã desse sabor, Maria, mas o seu está perfeito. — disse Katarina depois de comer a sua fatia inteira. — Eu quero até mais um pedaço. — Pode deixar… — a portuguesa pega o prato da amiga com a finalidade de lhe servir mais um pedaço. — Esse doce realmente é muito bom, parabéns pela sua culinária, Maria Inês. — disse Iara sorrindo também. — Já sei com quem vou encomendar o próximo bolo do meu aniversário. — disse Miguel enquanto comia. — Come de boca fechada, ó! — logo em seguida Rafael acertou um tapa na nuca do mais novo e depois levou seu olhar para a colega doceira. — Quando é esse programa que você vai participar? — Na verdade é hoje a tarde, daqui a pouco vou para a emissora. É uma competição em que cada episódio tem um vencedor. É para um programa vespertino, no programa A Tarde é Nossa da OnTV. — explicou a ranger amarela. — Entendi. Boa sorte. — disse o capoeirista. Mais tarde nesse mesmo dia, Maria Inês chega na sede da emissora OnTV onde participará do programa vespertino em um quadro de competição entre profissionais da cozinha. Ela é recebida pelos seguranças na porta onde a reconhecem pelo crachá que já havia sido feito alguns dias atrás. Juntos com os demais competidores, Maria Inês visita os estúdios da emissora. Ela fica encantada quando visita a gravação de uma novela chamada “Poeiras Estelares”. Maria Inês bateu palmas quando assistiu a cena de beijo do casal principal, mas parou quando o diretor pediu para ela ficar em silêncio. A guerreira do espírito do jacaré colocou o material que trouxe de casa e que usaria para fazer sua receita, eram seus utensílios da sorte. Sorriu olhando para eles, então, sua atenção foi chamada porque o diretor do programa iria explicar como funcionária o quadro naquele tarde. … Joaquim e Rafael treinavam na aldeia perdida, ambos sem camisa e já suados pelo tempo em que estavam presos naquilo. Se encontravam apenas eles ali até a chegada de Miguel com o uniforme da sua escola, o mais novo olhou para os lados e em seguida se aproximou dos mais velhos, porém não muito perto para não levar um golpe acidentalmente. — Onde está Katarina? — Ela foi buscar uma televisão para a gente assistir a Maria daqui. — respondeu Joaquim se esquivando de um golpe de Rafael. — Como vai ligar uma televisão aqui? — Com um gerador portátil. — respondeu Rafael que segurou o chute do guerreiro vermelho que estava vindo em sua direção. — Maneiro. — sorriu o líder e em seguida se recompôs. — Quer treinar, Miguel? — Não, não tenho certeza… — disse o Verde. — Vocês não me passam muito autocontrole quando estão treinando, prefiro treinar com as meninas porque elas sabem não passar dos limtes. — Você quem sabe. — disse o Rosa rindo. Katarina chegou carregando uma mini televisão, porém de um tamanho médio para uma minitelevisão, o gerador em outra. — Me ajudem aqui. — pediu a Azul. — Alguém coloca a televisão em cima da mesa para mim… Joaquim o fez, colocou a minitelevisão em cima da mesa. Então, Katarina arrumou tudo para eles poderem assistir a amiga durante sua aparição na TV. — Mas o sinal vai pegar aqui? — perguntou Miguel com um tom de descrença na voz. — A gente não tá, tipo, num lugar escondido da realidade? — só foi o adolescente terminar de falar que a televisão ligou com um perfeito sinal. — Ah, olha só parece que os sinais dos satélites chegam aqui. — Para de ser… Para de ser adolescente, Miguel, não precisamos saber como a televisão recebe sinal aqui, só precisamos ver a nossa amiga no seu momento especial. Miguel dá de ombros. — A gente vai ter que aguentar essa velha contar quantas fofocas antes da competição? — perguntou o guerreiro vermelho de braços cruzados. — Não faço ideia, mas logo

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