A Intrusa | Capítulo XVI
Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade…As janelas de guilhotina, dos compartimentos superiores, viviam escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho infinito…Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por um casal de surdos- mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido, por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio, e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por aquele caminho de sacrifício.Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio do temporal.De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação, vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!E ei-lo um concentrado… um padre! Fora o colégio dos padres que lhe inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa, se o efeito ali estava e irremediável!Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso e a jovialidade dos netos!E o filho, desigual no humor, ora tímido, ora arrebatado, cresceu sob a sugestão desse sonho. O que lhe valia a ela era a amizade do Argemiro, que, mais velho um ano que o amigo, lá o entretinha com as alegrias do seu temperamento robusto. Eram vizinhos, estudavam no mesmo colégio, amavam os mesmos poetas, completavam-se pelas suas semelhanças e dessemelhanças.A amizade de Argemiro foi um alívio para d. Sofia. Bem percebia ela não bastar à felicidade do filho!Os dois rapazes viviam como irmãos!Passaram-se anos assim, até que um dia entraram ambos em casa, um radiante, outro constrangido. Que se passara? não o soube nunca; mas por mal dela o constrangido era o filho, que entrou a empalidecer… a não dormir… enquanto o outro prosperava! – Meu filho! que tens?– Nada…– Escondes-me alguma coisa!– Nada…– Quero-te alegre!– Mas eu estou alegre… acredite que estou alegre e que sou feliz. Era sempre o que ele afirmava.“Ele mente-me!” – pensava a mãe amargurada. E a sua obra, a alegria, a ambição de glórias que, durante tantos anos se esforçara por implantar no filho, sumia-se, derrocava-se, sem que lhe fosse possível, a ela, ampará-la para a reconstruir!– Ele mente-me…Ela queria-o franco, risonho, amigo da vida. Ele retraía-se, tomava ares abstratos, entregava-se a leituras filosóficas e a estudos incompatíveis com a sua idade. Ela não entendia bem daquilo, mas pressentia um perigo sem forças para o combater…– Ele mente-me…Era a sua amargura. O filho tornara-se de uma sensibilidade doentia; fugia da sociedade, evitava a própria mãe, que se encolhia chorosa, para o não aborrecer.Aos vinte e três anos viu-o morto com uma febre. E aos vinte e cinco – padre!Não o quis contrariar, não se podia opor. Ele lá teria uma razão diferente daquela que alegava e que ela espiara em vão!Não fora chamado por Deus ao sacerdócio, fora levado por uma causa estranha, mas inabalável.Sonhar! de que vale o sonho que não frutifica, flor que se esfolha e de que nem o aroma sequer permanece com suave consolação!Ela sacrificara-se para tornar aquele filho um vencedor, um homem! e ei-lo místico, retraído, isolado do mundo para que o destinara!Ela pedira-lhe uma nora, ele trouxera-lhe uma batina, e à sua indagação angustiosa:– Meu filho, que tens?!Respondia ainda:– Nada. Eu estou contente… Eu sou feliz!“Mente-me!” – pensava ela consigo, disfarçando as lágrimas.O que lhe valia era a amizade do Argemiro. Esse, sim, era um rapaz sólido, prático como ela desejara o seu…Ah, não se podia esquecer nunca! No dia em que Assunção, pálido e trêmulo, lhe confiara a resolução de ser padre, ela levantara para ele a mão, como no tempo de criança, em que se via forçada a corrigi-lo… Ele estendera-lhe a face, como Cristo; ela retraíra-se, desatando num pranto soluçado.Negava o seu consentimento; não queria! O homem não nasce para o celibato, mas para a família; a missão ensinada por Deus é a do criador! – afirmava.E toda aflita:– Mas, que determinou semelhante idéia, meu filho?– A vocação…– Não… não! Tens algum desgosto
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